jdact
«(…) O padre Villaescusa, que falava do seu assento, levantou-se
solenemente. Esta reunião em que nos encontramos é mais do que um indício. O
diabo provocou-a, o Diabo mantém-na, o Diabo suscita muitas das palavras que
aqui se pronunciaram e se pronunciarão. E o padre Rivadesella, quase sem se
mexer, mas em tom claramente irónico, interveio. Pela razão que todos sabemos,
a noite passada Lúcifer voou pelos nossos céus na figura de um belíssimo
mancebo cujo voo deixava nos ares um sulco de prata. Há testemunhas. Se assim é,
falou o padre Villaescusa, sem perder a solenidade, proponho que se exorcize
esta sala imediatamente. Refere-se Vossa Paternidade ao espaço em que nos
encontramos, ou aos que compõem a reunião? Aquela inesperada e a todos os
títulos impertinente pergunta do Inquisidor-mor surpreendeu quase todos os
presentes, e, mais do que ninguém, o padre Villaescusa. Não me referia a
ninguém em concreto, Excelência. Nesse caso, é de pensar que a presença do
Diabo não constitui nenhuma novidade. O Senhor está em toda a parte, mas o
Diabo anda sempre atrás dele... Mas, às vezes, o Senhor distrai-se. O que vem a
ser mais ou menos o que eu disse antes. Que o Senhor se inibe, mas a mim
custa-me muito acreditar nisso. Tornou a ouvir-se a voz eminente do
Inquisidor-mor.
Permito-me recordar a Vossas Paternidades que estamos a afastar-nos do
assunto que aqui nos trouxe. Tínhamos ficado em se o Rei tem ou não o direito
de ver a Rainha nua, e se isto é ou não pecado. Rogo a Vossas Paternidades que
se pronunciem claramente sobre este ponto. Afirmo que tem esse direito e que
não é pecado, respondeu com voz segura o padre Almeida, afirmo não só isso, mas
a conveniência de que isso aconteça para que no casamento dos Reis, não como
tais mas sim como cristãos, se realize a Graça do Senhor. O padre Villaescusa
saltou como picado por uma vespa. Diz Vossa Mercê a Graça do Senhor? Acha que a
Graça do Senhor se manifesta no coito? Ou na contemplação desses horríveis
penduricalhos das fêmeas que se chamam peitos? Ou prefere que a contemplação se
verifique pelas costas, evidentemente contra natura? Refiro-me, como é óbvio, à
contemplação das nádegas. O padre Enríquez, O S D., tinha adormecido uma ou
duas vezes; outras, tinha arrebitado a orelha, e, muitas, sorrido. Nesta altura
levantou a mão cortesmente. Visto que este debate se desenrola em língua
romance, permito-me rogar ao sábio e virtuoso padre Villaescusa que chame as
coisas pelos seus nomes. Quero dizer, mamas em vez de peitos, cu em lugar de
nádegas. Se bem me lembro, o ilustre poeta padre Léon, na sua versão do Cântico
dos Cânticos, traduz claramente: anossa irmã é pequena e mamas não tem. Que
será da nossa irmã quando se começar a falar dela?
Recitara-o com evidente complacência, e todos pareciam tê-lo escutado
com prazer, menos o padre Villaescusa, que troou: e Vossa Paternidade atreve-se
a fazer essa citação, sendo dominicano como é? Embora convenha recordar que em
mãos de dominicanos esteve a vida e a morte desse repugnante marrano, e que
foram dominicanos os que furtaram ao Senhor o cheiro da sua carne chamuscada. Pois
nós, os agostinhos, estamos muito orgulhosos dele [(o frade agostinho Luis León
(1527-1591) foi um importante escritor renascentista espanhol, poeta notável.
Provavelmente judeu converso, viu-se acusado de heresia pelos dominicanos, o
que, juntamente com a sua tradução do Cântico dos Cânticos, o levou a trocar a
sua cela pelas da Inquisição (maldita)
durante cinco anos], respondeu-lhe, com voz segura, o representante da mais
antiga das ordens presentes. Coisa que não me espanta, acrescentou o padre
Villaescusa, porque todos vós sois suspeitos. Produziu-se uma série de
murmúrios nos diversos escalões do Supremo, ante a ousadia daquele capuchinho
febril e colérico. O Inquisidor-mor cortou a barafunda que se avizinhava. Deixemos
em paz os mortos. Insisto em que o debate não se afaste do seu tema» In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, 1989, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT