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«(…) Pois eu mantenho que o Rei não pode ver a Rainha nua sem pecado; e
insisto também em que os pecados dos Reis os paga o povo inocente. Observo,
pelas caras e pelos murmúrios, que há dissidentes da sua opinião tão
respeitável, padre Villaescusa, de modo que se nomearão outras duas comissões
para examinar a complexidade do caso. Uma, que determine se o Rei pode ou não
contemplar a Rainha sem vestidos que ocultem, ou pelo menos velem, a sua nudez;
outra, que examine à luz das Escrituras e dos Padres se o povo paga ou não paga
os pecados do Rei, embora tendo em conta que não se trata dos seus erros de governante,
mas sim dos seus pecados pessoais, não é assim? Porque, que do desgoverno
resultem danos para as monarquias, não é necessário discuti-lo.
Resta saber o que se entende por desgoverno, disse o padre Villaescusa.
Queimar judeus, bruxas e mouriscos; queimar hereges; atentar contra a liberdade
dos povos; fazer os homens escravos; explorar o seu trabalho com impostos que
não podem pagar; pensar que os homens são diferentes quando Deus os fez
iguais... Querem Vossas Paternidades que prossiga na enumeração? Tinham ouvido
estupefactos o padre Almeida: todos, incluindo o Inquisidor-mor. E, como um sussurro,
corria de boca em boca: Este jesuíta tem que ser posto na ordem. E ia-se
levantar a primeira voz de protesto, quando entrou o fâmulo conhecido e falou
ao ouvido do presidente. Um momento, senhores. Temos uma visita inesperada. E
disse ao fâmulo: que entre esse cavalheiro. Saiu desfazendo-se em salamaleques,
cortesia para aqui, cortesia para ali, em todas as direcções; e, pouco depois
de sair, tornou a abrir-se a porta e no seu vão apareceu o conde da Peña
Andrada. Ficou parado na soleira, descobriu-se e dedicou aos presentes uma
inclinação de cabeça do mais ortodoxo. Adiante, conde.
Não o fez o conde sem antes repetir a saudação, desta vez tripla, como
se os presentes fossem reis: roçando a alfombra escarlate com a pluma do
chapéu; e, ao avançar e passar diante do Cristo iluminado, repetiu-a com gesto
mais acentuado. Ergueu-se e encarou o Inquisidor-mor: com o fragor das
disputas, certamente que Vossência não se deu conta de que estes pavios
cresceram demasiado, e de que tremem as luzes dos círios. Ao recair o seu
tremelicar sobre a cara do Senhor, esta parece que escurece mais. Se Vossência
mo permite, gostaria de os espevitar. Mal lhe respondeu o prelado, com voz um
tanto surpreendida, faça-o, se lhe apraz, o conde puxou da espada e, com uma
espadeirada como um relâmpago, espevitou o círio da direita. Os presentes não
tinham tido tempo de manifestar o seu estupor, mas ouviu-se uma voz que
sussurrava: atreveu-se a desembainhar diante do Crucificado!, e já o conde, de
outra espadeirada, igual, tinha espevitado o círio da esquerda: ficou simétrico
com o da direita, ambos da mesma altura, e com luzes de brilho idêntico, sem
mais tremor que o necessário.
A seguir, depositou a espada aos pés do crucifixo. Estou à vossa
disposição, senhores. E permaneceu postado diante da assembleia, no sítio
exacto em que se colocavam as testemunhas quando vinham depor. O Inquisidor-mor
perguntou-lhe: por que veio Vossa Excelência? Fala-se em toda a cidade do que
se trata aqui, e julguei cortês oferecer-vos o meu testemunho, e fá-lo-ei de
boamente, mas antes gostaria de cumprimentar um velho amigo aqui presente. E,
sem esperar anuência, aproximou-se da fila dos consultores e estendeu a mão ao
padre Almeida. Há muito tempo que não nos vemos, padre. Sim, efectivamente,
muito tempo. Enquanto apertavam as mãos, o padre Rivadesella observou-os, e
pareceu-lhe que em algo se assemelhavam, embora em algo muito maior diferissem».
In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, 1989, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT