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«(…) Doutor Lobo, tenho de lhe
dar os parabéns!, diz ele com um enorme sorriso na cara. O senhor está curado!
Esta afirmação é feita no tom de quem celebra um golo de Portugal na final do
Mundial, claro. Não sei como, por vezes milagres destes acontecem, mas o facto é
que o tratamento funcionou melhor do que se esperava e a sua doença
desapareceu! Está curado! Levanto-me e abraço-o, dou pinotes de alegria, estou
curado!, estou curado!, a vida é bela e este hospital é maravilhoso! Os
enfermeiros e os outros pacientes ouvem os gritos e vêm ter comigo, parabéns,
doutor Lobo!, dizem uns, o senhor merece!, acrescentam outros, e eu a todos
abraço e com todos festejo a boa nova: a doença desapareceu e estou enfim
curado, Portugal pode não ter ganho o Mundial mas eu ganhei o meu campeonato.
Depois saio dali e vou beber uns copos ao Hotel Lisboa. Se não fosse tão velho
até ia ver as tailandesas do Jai Alai, e porque não ir vê-las mesmo com esta
idade? No fim de contas estou a sonhar e nos sonhos permitimo-nos tudo, não é
verdade? Ah, sonhos…
A realidade, todos o sabemos, não
se compadece com os nossos desejos e quando estas fantasias reconfortantes
acabam temos sempre de voltar a ela. As coisas são como são, não como queremos
que sejam. Carrego esta doença comigo e ela não se irá embora só porque o quero
ou por quaisquer artes mágicas. Apesar de todas as esperanças que os meus
sonhos acalentam, sei no meu âmago que a doença me matará. Por isso a minha
vida tornou-se uma dança estranha e desgastante entre sonho e realidade. Nuns
momentos fantasio com a cura e noutros caio em mim, enfrento a realidade e
assumo que estou a chegar ao fim da linha. A gangrena avança cá dentro e com
ela me levará, não há nada que eu possa fazer a não ser resignar-me ao que o
destino já me reservou. A terrível verdade, aquela que sempre soube sem na
verdade o saber, é que não sou imortal. Hoje, porém, e depois de ouvir a notícia
que o doutor Évora me deu, sinto-me aliviado. Não tenho um mês de vida pela
frente, mas sete. Sei que em breve voltarei a sentir-me obcecado com este
problema, que retomarei a terrível contagem decrescente, que o insuportável
peso da morte me assentará de novo sobre os ombros e que no final a terrível
realidade acabará mais uma vez por se impor ao doce sonho. Neste momento,
contudo, quero sentir-me alegre e fruir a minha efémera felicidade. Vou viver
mais do que esperava e isso, consideradas as minhas penosas circunstâncias, é
uma bênção.
Além disso, sinto-me melhor. Não
sei se foi da boa nova ou se é do tratamento, mas o facto é que a boa disposição
regressou e voltei a ter forças e a sentir ânimo. É por isso que estou agora
sentado à minha secretária a redigir estas palavras. Estive um mês parado, sem
vontade nem alento para rabiscar uma linha que fosse. A história da Nadija, do
Artur, da Lian-hua e do Fukui, queridos amigos que tanto me marcaram, flores de
lótus que com gestos simples honraram a humanidade neste mundo conspurcado de
lama, reduzir-se-ia à narrativa do que lhes aconteceu na primeira parte das
suas vidas, que deixei inscrita nas páginas de As Flores de Lótus. As forças faltavam-me
e a história estava condenada a ficar por aí.
O alento, todavia, voltou quando
menos esperava. Acredito, não me perguntem como nem porquê, que a Providência
me concedeu estes meses suplementares com um propósito definido. E que propósito
poderá ser esse senão terminar o que em boa hora comecei? É por isso que aqui
estou de novo, de cara lavada e ânimo renovado, animado pela determinação férrea
de contar o que se passou com aquelas quatro pessoas que tão importantes foram
para mim. É isso o que quero fazer e é isso o que farei. Recordará, que o livro
precedente nos deixou em suspenso quando os acontecimentos cristalizaram um
virar de página da história do século XX, numa altura em que, no rescaldo do
desastre da Primeira Guerra Mundial, as grandes tendências ditatoriais da década
de 1920 se começaram a definir. Na ponta ocidental da Europa a revolução do 28
de Maio de 1926 trouxera a ditadura para Portugal e o meu amigo Artur, então um
jovem tenente a quem a mulher, Catarina, ainda não conseguira dar filhos,
viu-se inesperadamente no epicentro dos acontecimentos. Coube-lhe a missão de
convencer o doutor Oliveira Salazar a assumir a pasta das Finanças num período
de absoluto descrédito da democracia e da República.
Já na outra extremidade da Europa
a ditadura pertencia ao proletariado, ou pelo menos era o que os ditadores
comunistas alegavam. Lenine tinha morrido e Stalin preparava-se para pôr de
lado o breve regresso à economia de mercado encetado pela Nova Política Económica
para avançar, ou recuar, para o comunismo puro e duro, com as requisições forçadas
e a colectivização das terras. A minha Nadija era então apenas uma criança, mas
a família regressara à Ucrânia para viver na pequena propriedade que o pai
herdara. Como se iriam dar com a experiência política, social e económica então
em curso? Poderia o comunismo funcionar?» In José Rodrigues dos Santos, O Pavilhão
Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN 978-989-616-709-7.
Cortesia de Gradiva/JDACT