sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Muhammed e eu permanecíamos há longos minutos na Sé de Lisboa, onde se aglomerara muita gente. O velho edifício não caíra, e à medida que iam passando por ele muitos iam entrando»

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«(…) Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: se my mientes, te arranco el corazón com los dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão Negro libertou-o e ordenou: vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da sala, em cima de um sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias levantadas, e um dos outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos, preparava-se para penetrá-la. Ei cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás, aflito, e riu nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe ergueu-lhe o punho à frente dos olhos e perguntou: quien manda? Tu. Entonces, sou yo lo primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um pouco. O rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe veio o homem que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto, sempre com ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo acabou estava com medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão Negro proclamou que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram muito e só depois se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um jarro, ou uma panela grande, para ir buscar água à fonte, acompanhado por um dos espanhóis.
Dirigiram-se até à fonte pública e, quando lá chegaram, perceberam que muitos outros tinham tido a mesma ideia, havia muita gente próxima da fonte, incluindo dois guardas da prisão. De imediato, aos gritos, o rapaz denunciou o bandido como um fugitivo do Limoeiro. Ao ouvi-lo, o homem fugiu, deixando cair no chão o jarro e a panela. O rapaz contou aos soldados o que se passara e eles partiram, a correr, na direcção da casa onde estava o Cão Negro. Foi nesse momento que vi o rapaz pela primeira vez. Muhammed e eu, escondidos atrás de um casebre, assistimos ao que se passou de seguida. Junto à fonte, o rapaz esperou a sua vez de beber água. Entretanto, ouviram-se tiros e apareceu o Cão Negro e os seus dois homens, que o teriam apanhado, se ele não tivesse fugido. Só o voltei a ver horas mais tarde, mas a irmã Margarida contou-me que estes acontecimentos obrigaram o rapaz a demorar mais tempo a chegar ao que restava da sua morada. Ficou desolado e alarmado. A sua casa já não existia. Não sabia onde procurar a irmã e uma grande tristeza invadiu a sua alma, ao pensar que o mais certo era ela ter morrido.

Muhammed e eu permanecíamos há longos minutos na Sé de Lisboa, onde se aglomerara muita gente. O velho edifício não caíra, e à medida que iam passando por ele muitos iam entrando. Feridos, de braços ao peito, nucas ensanguentadas, vestes rasgadas, coxeando, cobertos de pó, imploravam por ajuda e água. Sentados em grupos ou solitários, no chão, os desgraçados choravam, gemiam, soluçavam, rezavam, criando na igreja um murmúrio geral lúgubre, uma ladainha triste e soturna. Muhammed e eu fomos circulando no interior, sempre a vigiar as portas, para ver se o Cão Negro também lá entrava à nossa procura. No entanto, nem ele nem os seus dois companheiros apareceram. Pedras ir cair em cima deles, murmurou Muhammed. Sorri e depois coloquei no rosto um ar exageradamente sério e disse: isso querias tu, seu rato traidor. Espantado, Muhammed perguntou: rato traidor? Muhammed não ir trair Santamaria! Olhei-o fixamente, fingindo-me zangado: deixaste-me sozinho a levar pancada! Se não fosse o tremor de terra, a esta hora já tinha esticado o pernil!
Muhammed estacou, sinceramente admirado: eles ir atacar Santamaria? Eu indignei-me: o Cão Negro quase me matou com a barra de ferro! Olha! Mostrei os sítios onde o espanhol me acertara: apanharam-me à saída das latrinas e depois enfiaram-me na sala ao lado. Se não fosse o terramoto, tinha morrido! E tu, meu saca…, meu crápula cobarde, escondido como um rato! Nada de vires ajudar o teu amigo! Foi a vez de Muhammed se indignar: Muhammed não ir ver eles ir bater em Santamaria! Ignorei-o e prossegui, sempre em tom acusatório: onde é que tu andavas, salafrário? A fazer poucas-vergonhas com os franceses logo de manhã? Eu ao menos ajudei-te. Se não fosse eu, o soldado tinha-te varado com um balázio! O árabe, tão falsário como eu, manteve uma indignação intensa: eu ir no pátio, ir jogar dados com franceses! Ir ganhar dinheiro antes de tudo ir cair! Bufei, fingindo que não acreditava nele, mas depois sorri. Muhammed era tudo menos corajoso, mas mesmo assim sabia que podia contar com ele. Perguntei: tens dinheiro?» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT