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«(…) Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: há uma fonte
numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o
salafrário ameaçou-o novamente: se my mientes, te arranco el corazón com los
dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão Negro libertou-o e
ordenou: vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da sala, em cima de um
sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias levantadas, e um dos
outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos, preparava-se para
penetrá-la. Ei cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás,
aflito, e riu nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe
ergueu-lhe o punho à frente dos olhos e perguntou: quien manda? Tu. Entonces,
sou yo lo primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um
pouco. O rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe
veio o homem que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto,
sempre com ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo
acabou estava com medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão
Negro proclamou que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram
muito e só depois se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um
jarro, ou uma panela grande, para ir buscar água à fonte, acompanhado por um
dos espanhóis.
Dirigiram-se até à fonte pública e,
quando lá chegaram, perceberam que muitos outros tinham tido a mesma ideia,
havia muita gente próxima da fonte, incluindo dois guardas da prisão. De
imediato, aos gritos, o rapaz denunciou o bandido como um fugitivo do Limoeiro.
Ao ouvi-lo, o homem fugiu, deixando cair no chão o jarro e a panela. O rapaz
contou aos soldados o que se passara e eles partiram, a correr, na direcção da
casa onde estava o Cão Negro. Foi nesse momento que vi o rapaz pela primeira
vez. Muhammed e eu, escondidos atrás de um casebre, assistimos ao que se passou
de seguida. Junto à fonte, o rapaz esperou a sua vez de beber água. Entretanto,
ouviram-se tiros e apareceu o Cão Negro e os seus dois homens, que o teriam
apanhado, se ele não tivesse fugido. Só o voltei a ver horas mais tarde, mas a irmã
Margarida contou-me que estes acontecimentos obrigaram o rapaz a demorar mais
tempo a chegar ao que restava da sua morada. Ficou desolado e alarmado. A sua
casa já não existia. Não sabia onde procurar a irmã e uma grande tristeza
invadiu a sua alma, ao pensar
que o mais certo era ela ter morrido.
Muhammed e eu permanecíamos há longos minutos na Sé de
Lisboa, onde se aglomerara muita gente. O velho edifício não caíra, e à medida
que iam passando por ele muitos iam entrando. Feridos, de braços ao peito,
nucas ensanguentadas, vestes rasgadas, coxeando, cobertos de pó, imploravam por
ajuda e água. Sentados em grupos ou solitários, no chão, os desgraçados
choravam, gemiam, soluçavam, rezavam, criando na igreja um murmúrio geral
lúgubre, uma ladainha triste e soturna. Muhammed e eu fomos circulando no
interior, sempre a vigiar as portas, para ver se o Cão Negro também lá entrava
à nossa procura. No entanto, nem ele nem os seus dois companheiros apareceram. Pedras
ir cair em cima deles, murmurou Muhammed. Sorri e depois coloquei no rosto um
ar exageradamente sério e disse: isso querias tu, seu rato traidor. Espantado,
Muhammed perguntou: rato traidor? Muhammed não ir trair Santamaria! Olhei-o
fixamente, fingindo-me zangado: deixaste-me sozinho a levar pancada! Se não
fosse o tremor de
terra, a esta hora já tinha esticado o pernil!
Muhammed estacou, sinceramente
admirado: eles ir atacar Santamaria? Eu indignei-me: o Cão Negro quase me matou
com a barra de ferro! Olha! Mostrei os sítios onde o espanhol me acertara: apanharam-me
à saída das latrinas e depois enfiaram-me na sala ao lado. Se não fosse o
terramoto, tinha morrido! E tu, meu saca…, meu crápula cobarde, escondido como
um rato! Nada de vires ajudar o teu amigo! Foi a vez de Muhammed se indignar: Muhammed
não ir ver eles ir bater em Santamaria! Ignorei-o e prossegui, sempre em tom
acusatório: onde é que tu andavas, salafrário? A fazer poucas-vergonhas com os
franceses logo de manhã? Eu ao menos ajudei-te. Se não fosse eu, o soldado
tinha-te varado com um balázio! O árabe, tão falsário como eu, manteve uma
indignação intensa: eu ir no pátio, ir jogar dados com franceses! Ir ganhar
dinheiro antes de tudo ir cair! Bufei, fingindo que não acreditava nele, mas
depois sorri. Muhammed era tudo menos corajoso, mas mesmo assim sabia que podia
contar com ele. Perguntei: tens dinheiro?» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu,
Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para
sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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