sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Pavilhão Púrpura José Rodrigues dos Santos. «Talvez mais seis meses. Quase dei um salto de alegria na cadeira. Eu sei que, apresentada a coisa desta maneira, a minha reacção pode parecer exagerada»

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«Hoje tive uma boa notícia. Como é habitual desde que há quase meio ano me foi diagnosticada uma doença fatal a aproximar-se da fase terminal, esta manhã fui ao Hospital Conde de São Januário para o tratamento e as análises do costume. Tiraram-me sangue, fizeram-me uma TAC, meteram-me numa máquina para me submeter a uma ressonância magnética, injectaram-me as drogas da terapia…, enfim, fizeram o que sempre fazem quando lá tenho de ir. Os procedimentos prolongaram-se por toda a manhã. Depois, e apesar do enjoo, desci a colina da Guia para almoçar no Clube Militar e, pelas três da tarde, subi de novo ao hospital para a consulta que tinha marcada com o doutor Évora. Confesso que esta consulta constitui sempre para mim um momento de grande tensão e nervosismo, uma vez que é o instante em que me é revelada a evolução da doença. As novidades raramente são positivas, pelo que, não me importo de o reconhecer, entro sempre naquele gabinete com suores frios a percorrerem-me o corpo e as pernas tão fracas e a tremerem tanto que tenho até a impressão de que o meu tronco não está assente em pernas, mas em esparguete cozido. Desta feita, porém, algo de novo aconteceu.
Sabe uma coisa curiosa?, observou o médico enquanto examinava os resultados das análises, da ressonância magnética e da TAC com uma expressão mais positiva do que era habitual. Creio que a progressão da doença abrandou. Depois de passar meses a fio a ouvir más notícias sempre que ali me sentava, foi a primeira vez que as palavras dele realmente me animaram. A sério, doutor?, admirei-me, o peito de repente desanuviado, a esperança a incendiar-me o coração apesar de a cabeça me recomendar prudência. Isso quer dizer…, quer dizer o quê? O médico indicou uma mancha visível na ressonância magnética. Está a ver aqui? Pegou noutra imagem, a da ressonância que eu havia feito no mês passado, e pô-las lado a lado, a actual e a anterior. Agora compare. Olhei para uma e para a outra e a sombra da desilusão perpassou-me no espírito. Aumentou, doutor… Pois sim, mas aumentou pouco. Não vê? Admito que os meus conhecimentos nesta área são nulos, ou andam lá perto, pois não consegui perceber onde via ele razões para o menor dos optimismos.
Eu…, confesso que não, balbuciei, o desapontamento já a tomar conta de mim mas apesar de tudo a esperança a manter ainda acesa a sua muito trémula chama. A mancha cresceu… Mas cresceu menos do que devia ter crescido! Esforcei-me por ver ali o que ele via, tentei medir a taxa de crescimento; é verdade que à esquerda parecia quase na mesma, mas o resto estava indubitavelmente maior. O facto é que, depressa ou devagar, o mal continuava a espalhar-se. E então, doutor? Não percebe? Isto quer dizer que o senhor vai viver um pouco mais do que eu pensava… O meu coração deu um pulo e arregalei os olhos, esperando contra a esperança que a resposta à minha pergunta seguinte me desse razões para festejar. Quanto tempo mais? O doutor Évora olhou-me com uma expressão que tenho dificuldade em definir. Talvez mais seis meses. Quase dei um salto de alegria na cadeira. Eu sei que, apresentada a coisa desta maneira, a minha reacção pode parecer exagerada. No fim de contas este anúncio significa que morrerei daqui a sete meses, e sete meses não são nada numa vida. É como se fosse já depois de amanhã. Contudo, ponha-se por favor no meu lugar.
Há cinco meses este mesmo médico diagnosticou-me uma doença a entrar na fase terminal e deu-me então seis meses de vida. Cinco desses meses já se esgotaram, só me resta um. Pode imaginar o que uma situação destas representa na cabeça de uma pessoa? Acha que é possível ser-nos passada uma sentença de morte sem que queimemos o dia a pensar nela e a fazer contas ao tempo cada vez mais diminuto que nos resta? Não há quase momento em que, estando acordado, não pense na minha morte iminente. Contabilizo os dias, as horas e até os minutos; o assunto tornou-se uma verdadeira obsessão, mórbida é certo, mas que não tenho modo de evitar ou controlar. E agora, quando pelas minhas contas já só me restam uns trinta dias, eis que o mesmo médico, depois de mais uma vez me vasculhar nas entranhas, chega à conclusão de que tenho afinal sete vezes mais tempo de vida do que inicialmente se pensava. Ou seja, em vez de um mês, sobram-me ainda sete. Será que o significado de um anúncio destes pode ser compreendido em toda a sua plenitude? A minha vida será sete vezes mais longa do que eu esperava! Sete vezes! Não é isso motivo mais do que suficiente para celebrar?
Saí do hospital leve como uma flor, como se o imenso peso que a morte me carregara sobre os ombros tivesse sido subitamente levantado, e ia tão ligeiro e feliz que até dancei no caminho para casa; parecia o garoto que fui quando no Liceu Infante D. Henrique arranquei um beijo à Constança, o primeiro que dei a uma garota. Repito que tenho a consciência de que sete meses de vida não são nada, parece evidente, mas acaba por ser muito mais do que ainda esta manhã me atrevia a esperar. Claro que, como qualquer pessoa a quem um médico anuncia uma doença tão terrível como esta, vivo na quase permanente esperança de um restabelecimento miraculoso da minha saúde. Por vezes, quando me ponho a sonhar acordado, imagino-me sentado no gabinete do doutor Évora, depois de mais uma infindável sessão de exames e tratamentos, a ouvi-lo anunciar-me a novidade maravilhosa». In José Rodrigues dos Santos, O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN 978-989-616-709-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT