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«(…) A Ásia, para onde as nossas
atenções se irão voltar com crescente pormenor, atravessava também um momento
de grande turbulência e choque entre as ideias das diferentes ditaduras de
origem marxista, as comunistas e as fascistas. A China vivia o período
unificador das Expedições do Norte, quando o Kuomintang e o Partido Comunista
se uniram contra os senhores da guerra e depois se desentenderam. A minha
Lian-hua, apenas um ano mais velha que a Nadija, vivia no Jardim das Flores
Esplendorosas, a quinta da família, e fora raptada pelos comunistas do bando de
Mao Tse-tung. O pai pedira ajuda ao Kuomintang, mas a verdade é que ela estava
nas mãos do inimigo e fora levada para parte incerta. O sequestro permitira a
Lian-hua ver como agiam os guerrilheiros comunistas e a menina acabou forçada a
integrar uma unidade que tinha por missão atacar os proprietários de terras
para fomentar a grande revolução que supostamente desembocaria na ditadura do
proletariado do socialismo e depois no comunismo sem classes. A acção, contudo,
correra mal e ela viu-se sozinha num mato infestado de tigres. Como escaparia? Pela
mesma altura, e do outro lado do mar da China, o Japão parecia tranquilo.
Parecia. O meu amigo Fukui, cujo pai fora morto por assassinos shikaku provavelmente
enviados pelos velhos inimigos da família Satake, os Miyamoto, embrenhava-se na
ciência política e ia concluindo que o Japão precisava de se afastar das ideias
tradicionais do xintoísmo e do confucianismo e de abraçar a modernidade
ocidental em toda a sua plenitude. Fukui constatara que os seus antepassados
pelo lado da mãe eram cristãos de Nagasaki, quem sabe se portugueses?, e a
descoberta acicatara-lhe a curiosidade.
Pois agora, amigo leitor, vou
relatar-lhe o que sucedeu a seguir. Convém termos presente que naquela época a
informação não circulava com a rapidez com que hoje se expande, apesar da
telegrafia e da recente popularização da telefonia, a que agora se chama rádio.
É por isso que não consigo reprimir um sorriso sempre que penso na maneira como
tive conhecimento daquele que veio a revelar-se um dos mais importantes de
todos os acontecimentos da década de 1920 e na forma como então reagi. Não foi
pelos jornais que soube do que se passava, não foi por telegrama, não foi
sequer através da telefonia. Foi graças a uma pergunta que me chegou por carta.
Eu explico. Na altura era ainda jovem e estava a tirar um curso de Economia por
correspondência de uma universidade americana, o Instituto Superior de Chicago
e do Montana. Acontece que, no início de 1930, eles me mandaram um exercício. A
primeira pergunta era sobre os motivos do colapso da Bolsa de Nova Iorque uns
meses antes, em Outubro de 1929, e a segunda dizia respeito às relações de
causa-efeito entre o crash de Wall Street e a vaga de falências que se desencadeou
na América. Fiquei admirado com estas perguntas pois nunca ouvira falar em tal
assunto. Colapso? Crash? Falências? Caramba, que palavras tão dramáticas os
camones gostavam de usar! Como tinha de dar resposta ao exercício e não fazia a
menor ideia daquilo de que os tipos da universidade estavam a falar, fui ter
com o Custódio, um amigo que trabalhava no BNU, e perguntei-lhe o que se
passava com a Bolsa de Nova Iorque.
Pois, parece que há uns problemas,
disse ele. Noutro dia vieram aqui os bifes do Hong Kong and Shanghai Bank e
vi-os muito preocupados. Por quê?, admirei-me eu. O crash é lá na América… Isso
não é assim tão simples, explicou o meu amigo. Há o problema do contágio.
Repara, os americanos têm muitos investimentos aqui no Oriente e também na
Europa. Como as empresas americanas estão a ir à falência ou a enfrentar
grandes dificuldades, começaram a retirar o dinheiro que investiram no
estrangeiro. Preferem ter esse dinheiro na América para não irem também à falência,
estás a ver? Além disso parece que o governo americano ergueu barreiras
alfandegárias destinadas a impedir as importações e assim proteger a indústria
do seu país, o que significa que aqui na Ásia estamos com dificuldade em vender
os nossos produtos para a América. Consta que na Europa andam a enfrentar o
mesmo tipo de complicações na exportação dos produtos deles. E então? Qual é o
problema dessas barreiras alfandegárias? Custódio olhou-me fixamente. Pensa
bem, Jorge. Se os americanos deixam de comprar o que produzimos, quem comprará?
Confesso que não tive resposta
para a pergunta, mas apesar de todas estas informações fiquei céptico. Não me
pareceu credível que uns probleminhas quaisquer na Bolsa de Nova Iorque
pudessem afectar assim tanto a nossa vida no outro lado do planeta. Que os
ingleses do Hong Kong and Shanghai Bank estivessem assustados até achei normal,
pois era natural que o banco tivesse muitos investimentos na América e a vaga
de falências criasse receios. Agora que uma questão destas nos tocasse no
dia-a-dia? Não, nem pensar! O Custódio bem podia falar em contágio e noutras
expressões do foro médico e epidemiológico, mas para ser franco tudo aquilo se
me afigurou um exagero. Com as explicações que obtive no BNU lá respondi às
perguntas que constavam do exercício do Instituto Superior de Chicago e do
Montana, meti tudo no correio e não me preocupei mais com o assunto. Tinha de
resto a nítida sensação de que a realidade descrita nessas minhas respostas
pertencia a um mundo que não era meu; tratava-se de uma espécie de universo
paralelo onde a economia não possuía a menor correspondência com a realidade na
qual eu e o resto do planeta vivíamos. Não decorria a vida normalmente em
Macau? Não era a nossa existência marcada pela mesma modorra prazenteira de
sempre? Para que nos interessava realmente o dito crash em Nova Iorque?» In
José Rodrigues dos Santos, O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN
978-989-616-709-7.
Cortesia de Gradiva/JDACT