domingo, 3 de novembro de 2019

Os Sonetos. William Shakespeare. António Simões e M. Gomes Torre. «Dizer que em teus olhos cavos tudo se achará. Seria inúteis elogios e vergonha voraz. O uso da beleza maior louvor receberá»

jdact

I
«De tudo que é mais belo queremos descendência,
Para que assim nunca morra a rosa da beleza,
Pois se o mais velho com os anos cessa a existência.
Seu tenro herdeiro a lembrança mantém acesa.
Mas tu, que a teus próprios olhos te reduziste,
Nutres tua chama com íntima combustão.
Onde abunda a beleza, uma carência viste.
Inimigo de ti mesmo, para ti sem compaixão.
Tu que és do mundo juvenil ornamento,
Arauto que anuncia a primaveril beleza,
Em teu próprio botão enterras teu prazimento,
Generoso avaro, pródigo em tua avareza.
Apieda-te do mundo, para glutão não seres.
Quando tu e a campa o que é dele comerdes.

II
Quando quarenta invernos em tua fronte abrirem
Fundas trincheiras em teu campo de beleza,
As vistosas vestes juvenis que agora em ti virem
Serão, então, trapos gastos, desprezível pobreza.
Ao perguntarem-te onde tua beleza está.
E o tesouro de teus ardentes dias jaz.
Dizer que em teus olhos cavos tudo se achará.
Seria inúteis elogios e vergonha voraz.
O uso da beleza maior louvor receberá.
Se pudesses responder: este belo filho meu
Saldará as contas e minha idade desculpará,
Sua beleza prova que é o sucessor teu.
Isso seria fazer jovem quem velho se sente.
E ver o sangue que tens frio correr quente.

III
Olha-te ao espelho e diz ao rosto que mirares:
São horas de gerares um novo rosto;
Se o seu aspecto jovem tu não renovares,
Enganas o mundo, à futura mãe causas desgosto.
Onde está aquela cujo ventre intocado
Desdenhe o trabalho da tua lavoura?
Ou é tão tolo que tenha desejado
Ser cova de amor-próprio e da geração vindoura?
Ao ver-te, tua mãe vê-se ao espelho,
E em ti recorda o doce Abril da juventude.
Assim, tu verás que, apesar de velho
E das rugas, este é o tempo da plenitude.
Mas se viveres decidido a ser esquecido.
Morre solteiro, e tua imagem morre contigo».
[…]
In William Shakespeare, Os Sonetos, 1609, tradução de António Simões e M. Gomes Torre, Relógio d’Água Editores, 2019, ISBN 978-989-641-926-4.

Cortesia de Relógiod’ÁguaEditores/JDACT