«(…) Deixar de comparecer à grande
inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar
mal-entendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa
pode ser resolvida directo com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito
pior. Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e
cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de
joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada
vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de
lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob os seus pés, e que
começava a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então
que ela fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas
farfalhando, e sentou-se num pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos
viram o acontecido, o rei também. Justo no momento em que ela, aliviada, se
deixou cair no pequeno banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em
procissão na igreja os monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no
rosto com um lencinho de linho e fez para seu filho, que estava lá longe com
Sot, um aceno estimulante. Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado
por toda a nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram
colocar-se bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e seus ajudantes
estavam se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco
e surdo, e depois, de repente, vozes agudas juvenis; isso mesmo, uma parte dos
monges de Lurõ tinha capas marrons e não brancas, e era claramente bem
entendido que se tratava de rapazes de pouca idade e as suas vozes subiam como
se fossem pássaros brancos esvoaçando em direcção ao enorme tecto da nave, e
quando as vozes alcançaram seu ponto mais elevado, enchendo toda a grande nave
surgiram as vozes graves e adultas dos próprios monges que cantavam ora em
compasso ora em descompasso. Sigrid já tinha escutado cantos em duas ou três
vozes, mas neste caso o canto estava sendo apresentado em pelo menos oito
vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não poderia acontecer, uma vez que
três vozes já era muito difícil de conceber.
Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos
arregalados, para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu
ser, com todo o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe, estremecendo de
tensão, e então ficou tudo escuro diante dos seus olhos e ela não mais podia
ver, apenas escutar, como se os ouvidos tirassem dos olhos a potência toda para
só escutar. Era como se ela tivesse desaparecido, como se se tivesse transformado em sons e em parte de toda a
música sagrada, mais bonita do que qualquer outra melodia apresentada nesta
vida. Um momento depois, ela voltou aos seus sentidos normais pelo facto
de algo ter tocado sua mão, e quando levantou os olhos descobriu que era o
próprio rei Sverker. Este dava uns tapinhas delicados na sua
mão e agradecia a ela, ironicamente, porque ele, de facto, era bem idoso, e bem
precisado estava que uma mulher em estado interessante se antecipasse a ele e
se sentasse. Se uma mulher abençoada podia sentar-se, também o rei podia,
queria ele dizer. Mas, se a ordem dos acontecimentos fosse inversa, isso,
claro, já não iria parecer tão bem. Sigrid conteve decididamente a intenção de
contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou,
se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de
importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém
corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira
rápida a conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei
já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente
Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem
ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ
precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que
plantavam acabava se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à
grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela,
Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a
dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido.
Todos iriam ganhar com a solução. Ela havia falado rápido e em voz
baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater
forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se
transformou em luz». In Jan
Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN
978-852-860-896-0.
Cortesia de
BertrandB/JDACT