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de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) Não tomaria café quente
desta vez, nem folhearia os livros na Thalia, tão-pouco os jornais.
Limitar-se-ia a andar, a provar do novo frio que conquistava a cidade. O sol
também já se rendera ao crepúsculo e chegara a vez de as pessoas se recolherem
aos lares feitos e a desfazer-se, aos jantares, sorrisos, choros, aos convívios
alegres e às solidões paranóicas, às surpresas e às depressões. Viena no final
do dia, tão igual a qualquer cidade do mundo, no entanto, com um encanto tão
peculiar. Hans quedar-se-ia mais um pouco a mirar a Ringstrasse, a olhar as montras
e as janelas, as vidas que passavam, presas nelas próprias e em nada mais.
Esperava-o uma batalha difícil
numa guerra perdida. Não tinha ilusões. A idade trouxera-lhe sabedoria e
perspectiva. Não se sentia sozinho, apesar de não restar ninguém. Vivera bem e
em paz, deu de si aos outros sem olhar a quem, não pediu nunca nada em troca,
talvez por isso se sentisse com tanto. Nenhuma convocatória formal, enviada com
mais de três meses de antecedência, escrita num tom intimidatório, o calaria.
Ao
conhecimento do Reverendo Padre Hans Matthaus Schmidt
Que se
registe a convocação para que o sujeito em epígrafe compareça
na
audiência ordinária a fim de esclarecer algumas dúvidas
sobre
os volumes da sua autoria O homem que nunca existiu e
Jesus é Vida, que, segundo um parecer preliminar da Congregação
para a
Doutrina da Fé, contêm proposições erróneas e perigosas.
Roma,
na sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 29 de
Junho
de 2010, Dia dos mártires São Pedro e São Paulo.
Assina,
William
Cardinal LEVADA
Prefeito
Luis E
Ladaria S. I.
Arcebispo
titular de Thibica
Secretário
Teve muito tempo para ler e reler
o texto apático nestes 100 dias. E o dia escolhido para enviarem a epístola
também não lhe parecia, de todo, inocente. Dia de São Pedro e São Paulo, só o
mais importante, a seguir ao Natal, dia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor do
Universo. Poderia ser uma mensagem encriptada ou paranóia dele. Hans retirou um
envelope do bolso do casaco. Não se julgue, pela qualidade do papel, que se
tratava da referida intimação. Essa já se encontrava na sua pasta, na
residência, pronta para seguir viagem com ele. Esta tinha proveniência idêntica,
da Santa Sé, mas em vez de um formal reconhecimento do expedidor, sem grandes
parangonas, tinha um brasão com um fundo vermelho. Uma mitra de tríplice coroa,
encimada por uma cruz em ouro, uma estola branca que descia do interior da
coroa para se unir, abaixo, com duas chaves entrelaçadas, uma de prata e outra
de ouro. As chaves que abriam o reino dos céus. Os versados nestas coisas de
armas, brasões, símbolos, reconhecê-las-iam num piscar de olhos, pois eram as mais
famosas a seguir às do próprio Sumo Pontífice. Tratava-se de um envelope da
Secretária de Estado da Santa Sé.
Hans
retirou o papel e releu-o. Fazia-o muito nestes tempos. Não levou muito tempo,
era pouco extenso e assim que terminou percebeu a razão por que a Ringstrasse
lhe parecia diferente. Dali a algumas horas tomaria o avião para Roma. No dia
seguinte não estaria ali a admirar o movimento, a vida, as luzes, não tomaria
um café quente no Café Schwartzenberg, o mais antigo de Viena, nem iria folhear
os livros à Thalia. Não sentiria este frio que deixaria de ser uma novidade e
não corromperia aquele ar com baforadas de vapor quente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira
Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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