segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Nunca eram iguais, mas este trazia um peso adicional. Eminência, chamou Trevor, um dos assistentes mais jovens, enfiado na sua batina negra, à porta do gabinete»


Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Era uma despedida. Uma partida incógnita, indeterminada, da qual não conhecia o desfecho. E quem conhecia o quê de alguma coisa? Se o homem planeava, Deus sorria. Sentia-se bem, plácido. E antes de virar as costas à Ringstrasse rasgou o envelope e o papel e deitou-os ao lixo. Que me custa ir mais cedo e ajudar um amigo?, murmurou enquanto se encaminhava para a residência. Dar sem olhar a quem. Quem tivesse olhado por cima do ombro de Hans Schmidt enquanto ele relia o texto, e ninguém o fez, poderia não perceber o garatujo, escrito à mão, em letra apressada, mas a assinatura tremida não enganava ninguém: Tarcísio Bertone, S.D.B.


Nos passos lentos pesavam os anos. Podia considerar-se bastante bem conservado para a idade, mas não escondia de si próprio o vigor trôpego que tentava esconder a todo o custo. Os passos trouxeram-no longe, tão longe, a lugares que nunca almejou em jovem, imberbe idade em que se tem as vistas curtas que se julgam mais compridas do que são. A pequena capela era para usufruto próprio, só seu ou de quem desejasse convidar. A estátua de um Cristo ao fundo, no altar, marcava contundentemente o espaço. Dois metros de granito de Carrara ao qual o escultor, atribuía-se a autoria a Miguel Ângelo, retirara o excesso de pedra para descobrir, por baixo, este imenso Cristo. A cabeça pendia para o lado direito num esgar de sofrimento que se perpetrava há 400 anos. A crueldade humana. Certamente que ele não via nenhuma estátua colocada a descoberto por algum escultor, mesmo o mais renomado do género artístico. Era o Cristo em pessoa, em toda a sua divina figura, quem via e a quem orava quando entrava na capela e se ajoelhava aos seus pés luzidios. Fazia-o impreterivelmente todas as manhãs e à noite, mas este final de dia em que se arrastava pelo corredor que a ela conduzia pedia uma oração especial. Um pedido de iluminação extraordinária, para que o auxiliasse na manobra das suas almas debaixo dessa luz.
Arquejava devido ao esforço e à preocupação. Não era um final de tarde como os outros. Nunca eram iguais, mas este trazia um peso adicional. Eminência, chamou Trevor, um dos assistentes mais jovens, enfiado na sua batina negra, à porta do gabinete. Eminência levantou a mão num gesto ríspido e rude que pedia silêncio e paz e entrou pela porta da capela que ficava em frente. Ajoelhou-se aos pés do Cristo angélico, fez o sinal da cruz e baixou a cabeça mais em jeito de clemência do que reverência, a não ser que uma arrastasse a outra. Sibilou uma litania ininteligível durante alguns instantes até se aperceber que não estava sozinho. Não precisou de olhar para saber quem era. Não se pode rezar em paz?, protestou sem olhar para trás. Não é hora de rezar, Tarcísio, advertiu o outro que trajava de forma idêntica, o escarlate uniforme dos Príncipes da Igreja. Talvez não seja. Mas é, certamente, algo que fazemos de menos, argumentou Tarcísio.
Não olhes para o que eu faço, olha para o que eu digo, citou o outro em tom de conselho. Tarcísio repetiu o devoto sinal da cruz e ergueu-se. Virou-se aquele que lhe perturbou a oração para logo baixar o olhar. Isto vai ter consequências, William, disse. Temos que minimizá-las. A que preço, William?, alçou a voz abespinhado. Ao preço que for, proferiu o outro com solidez. Temos de estar preparados para tudo, custe o que custar, alertou. Não sei se tenho forças, confessou Tarcísio. Deus dá o fardo, mas também a força para o suportar. Chegaste longe. Olha onde a tua força te trouxe. Olha onde Deus quis que o servisses. A voz de William era de estímulo sincero. Acreditava nas capacidades de Tarcísio.
Colocou-lhe uma mão terna sobre o ombro. E o teu caminho está longe do fim. Ele quer muito mais de ti. Mais alto. Sabes muito bem disso. Tarcísio tossiu incomodado. Não sabemos o que Ele quer depois. Tapou o rosto com as mãos. Nem sabemos o que Ele quer agora. Tarcísio denotava desnorteamento, uma ovelha perdida no meio das outras tresmalhadas. William colocou ambas as mãos sobre os ombros de Tarcísio e fitou-o com uma expressão dura. Olha para mim». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT