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de wikipedia e jdact
«(…) Houve uma terrível discussão
na casa paroquial, por causa de Yvette e do Fundo do Vitral. Depois da guerra,
a tia Cissie tinha dedicado todas as suas forças para conseguir um vitral para
a igreja, em memória dos homens da paróquia que tinham caído no conflito.
Porém, a maior parte deles não era conformista, pelo que a celebração tomou a
forma de um pequeno e feio monumento, em frente da capela metodista. Porém,
este facto não dobrou a vontade da tia Cissie. Angariou dinheiro, organizou
quermesses, forçou as raparigas a organizarem espectáculos de teatro para
conseguir fundos para o seu precioso vitral. Yvette, que até gostava da
actividade e das facetas exibicionistas dessas iniciativas, encarregou-se da
farsa denominada Mary in the Mirror e guardou os lucros, que deveriam ser
entregues ao Fundo do Vitral, quando se fizessem as contas. Em princípio, cada
uma das raparigas devia ter uma caixa de dinheiro para o Fundo. A tia Cissie,
pensando que as somas, todas juntas, talvez fossem já quase suficientes,
perguntou de repente pela caixa de Yvette. Esta continha apenas quinze xelins.
Houve um momento de puro horror. Onde é que está o resto? Oh!, exclamou Yvette,
com um ar casual. Emprestei-o a mim mesma. Também não era assim tanto. Mas,
então, as três libras e treze xelins de Mary in the Mirror? perguntou a
tia Cissie, num tom que parecia que as profundas do Inferno se estavam a abrir.
Oh, essas! Emprestei-as a mim
mesma. Posso pagá-las. Pobre tia Cissie! O tumor do ódio rebentou dentro dela e
houve uma cena terrível e pouco vulgar, que deixou Yvette a tremer de medo e de
nervosa repugnância. Até o pároco foi muito severo. Se precisavas de dinheiro, por
que é que não me disseste?, perguntou ele friamente. Já te recusámos alguma
coisa razoável? Eu pensei que não tinha importância, gaguejou Yvette. E o que é
que fizeste com o dinheiro? Creio que o gastei, disse Yvette, os olhos muito
abertos e perturbados e o rosto macilento. Gastaste-o em quê? Não me lembro de
nada: meias e coisas, e dei algum.
Pobre Yvette! Os seus ares e
maneiras senhoris estavam agora a eclipsar-se. O pároco estava zangado: o seu
rosto tinha um ar canino, de quem rosna, uma contracção de desprezo. Estava com
receio que a sua filha estivesse a desenvolver algumas das grosseiras e
corruptas qualidades de A-que-fora-Cynthia. Eras capaz de viver à larga,
com o dinheiro dos outros, não eras?, perguntou, com um desprezo frio, quase
animalesco, que mostrava a sua total falta de crença no seu coração. A inferioridade
de um espírito sem qualquer réstia de calorosa crença, sem orgulho na vida. Não
acreditava nela, total e inteiramente. Yvette ficou pálida e tomou um ar
distante. O seu orgulho, esse frágil e precioso lume que toda a gente procura
satisfazer, recuou como uma chama assoprada por um vento frio, como se tivesse
sido apagada e o rosto dela, agora branco e ainda parecido com uma branca flor,
a branca flor que era a sua vaidade, parecia não ter vida, ser apenas uma pura
e estranha abstracção.
Ele não crê em mim!, pensou ela,
no interior da sua alma. Para ele, eu sou..., nada! Sou um zero, sou apenas uma
coisa de que é preciso ter vergonha. É tudo uma vergonha, tudo uma vergonha! Uma
chama de paixão ou de raiva, apesar de a terem podido dominar ou enfurecer, não
a teriam degradado tanto como o fizera a falta de crença por parte do seu pai,
a sua última atitude de desprezo para com ela. O pai ficou um pouco assustado,
naquele silêncio de pensamentos estéreis. No fim de contas ele necessitava de
uma aparência de amor e crença e de uma vida luminosa, sem manchas, pois nunca
ousaria encarar o gordo verme da sua própria descrença, o verme que se agitava
no seu coração.
Que desculpa é que tens para dar?,
perguntou. Ela limitou-se a mirá-lo com aquele rosto de branca flor, insensível,
que o enchia de medo e lhe dava uma desamparada sensação de culpa. A outra, A-que-fora-Cynthia,
olhara para ele com o mesmo medo branco, o mesmo rosto estarrecido, o medo da sua
degradante descrença, o verme que se encontrava bem no interior do seu coração.
O seu maior receio era que alguém mais o viesse a saber. A angústia do seu ódio
era contra todos os que sabiam e se retraíam. Viu Yvette humilhada e
imediatamente as suas maneiras se modificaram, passando de novo a ser o mundano
e bem-humorado cínico que fingia ser. Ah, bom!, exclamou. Terás de o pagar,
minha menina, é tudo. Vou avançar-te o dinheiro da tua mesada. Mas vou descontar-te
quatro por cento ao mês, de juros. Até o próprio diabo tem de pagar uma
percentagem sobre os seus débitos. Para a próxima, se não podes confiar em ti
mesma, não mexas em dinheiro que não seja teu. A desonestidade não é bonita. Yvette
continuou esmagada, descoberta e humilhada.
Arrastou-se
de um lado para o outro, em busca dos vestígios do seu orgulho. Sentia repulsa
até por si mesma. Oh, por que é que ela tocara naquele dinheiro leproso! Toda a
sua carne se contraía, como se estivesse corrompida. Mas porquê? Porquê, porquê
tal coisa? Admitia ter feito mal ao gastar o dinheiro. Claro que não o devia
ter feito. Têm toda a razão para estarem zangados, disse para si própria. Mas
de onde lhe vinham aqueles horríveis estremecimentos da sua carne? Por que é
que ela se sentia como se tivesse apanhado um qualquer contágio físico?» In DH
Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984,
colecção O Imaginário, ISBN
978-972-370-164-7.
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