sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Marina estendeu a mão para a marca. Seus dedos tocaram o cabelo e Marina retirou a mão bruscamente. Percebi que era um gesto de repugnância. É cabelo..., de verdade, disse»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Examinei o grupo de bonecos. Reconheci uma figura fantasiada de mago, um policial, uma grande dama de roupa grená e um hércules de circo... Tinham sido construídos em escala real e vestiam luxuosos trajes de gala de baile de máscaras, que o tempo tinha transformado em farrapos. Mas havia neles alguma coisa que os unificava, que lhes dava uma estranha qualidade que indicava uma origem comum. Estão inacabados, descobri. Marina captou no acto o que eu estava querendo dizer. Alguma coisa faltava em cada um daqueles seres. O policial não tinha braços. A bailarina não tinha olhos, só duas órbitas vazias.. O mago não tinha boca, nem mãos... Examinamos as figuras balançando-se na luz espectral. Marina se aproximou da bailarina e examinou-a cuidadosamente. Apontou uma pequena marca na sua testa, bem em baixo da raiz do seu cabelo de boneca. A borboleta negra, de novo. Marina estendeu a mão para a marca. Seus dedos tocaram o cabelo e Marina retirou a mão bruscamente. Percebi que era um gesto de repugnância. É cabelo..., de verdade, disse.
Impossível.
Começamos a examinar cada uma das sinistras marionetes e encontramos a mesma marca em todas elas. Accionei outra vez a alavanca e o sistema de roldanas levantou os corpos de novo. Vendo-os subir assim, inertes, pensei que eram almas mecânicas que partiam para se unir ao seu criador. Parece que tem alguma coisa ali, disse Marina, nas minhas costas. Virei e vi que estava apontando para um canto da estufa, onde se distinguia uma velha escrivaninha. Uma fina capa de poeira cobria a superfície. Uma aranha passou correndo deixando um rastro de minúsculas pegadas. Ajoelhei e soprei a película de pó. Uma nuvem cinzenta se ergueu no ar. Sobre a escrivaninha havia um volume com encadernação de couro, aberto no meio. Com uma linda caligrafia, lia-se por baixo de uma velha fotografia de cor sépia colada no papel: Aries, 1903. A imagem mostrava duas meninas siamesas unidas pelo tronco. Exibindo vestidos de gala, as duas irmãs ofereciam à câmera fotográfica o sorriso mais triste do mundo.
Marina virou as páginas. O caderno era um álbum de fotografias normal e corriqueiro. Mas as imagens que continha nada tinham de normal e menos ainda de corriqueiro. A imagem das meninas siamesas era um prelúdio. Os dedos de Marina viraram uma folha atrás da outra para contemplar as fotos, com uma mistura de fascínio e repulsa. Dei uma olhada e senti um estranho formigamento na espinha dorsal. Fenómenos da natureza, murmurou Marina. Pessoas com má formação, que antigamente eram relegadas aos circos... O reverso obscuro da natureza exibia o seu rosto monstruoso. Almas inocentes presas no interior de corpos horrivelmente deformados. Por alguns minutos, passámos as páginas daquele álbum em silêncio. Uma a uma, as fotografias mostravam, sinto dizer isso, criaturas de pesadelo. Contudo, as deformações físicas não conseguiam ofuscar os olhares de desolação, de horror e solidão que ardiam naqueles rostos.
Meu Deus..., sussurrou Marina. As fotografias eram legendadas, com o ano e a procedência da foto: Buenos Aires, 1893. Bombaim, 1911. Turim, 1930. Praga, 1933... Era difícil para mim adivinhar quem, e porque, havia reunido semelhante colecção. Um catálogo do inferno. Finalmente, Marina tirou os olhos do livro e se afastou nas sombras. Tratei de fazer o mesmo, mas me sentia incapaz de me afastar da dor e do horror que aquelas imagens transpiravam. Poderia viver mil anos e nunca esqueceria o olhar de cada uma daquelas criaturas. Fechei o livro e virei para Marina. Ouvi a sua respiração na penumbra e senti-me insignificante, sem saber o que fazer, o que dizer. Alguma coisa naquelas fotos tinha perturbado Marina profundamente.
Está tudo bem?, perguntei. Marina fez que sim em silêncio, com os olhos quase fechados. De repente, alguma coisa ressoou na sala. Explorei o manto de sombras que nos cercava. Ouvi de novo aquele som inclassificável. Hostil. Maligno. Foi então que senti um cheiro de podre, nauseabundo e penetrante. Vinha da escuridão, como o hálito de um animal selvagem. Tive a certeza de que não estávamos sozinhos. Havia mais alguém ali. Observando-nos. Petrificada, Marina contemplava a muralha de trevas. Peguei a sua mão e guiei-a até a saída». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT