Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Examinei o grupo
de bonecos. Reconheci uma figura fantasiada de mago, um policial, uma grande dama
de roupa grená e um hércules de circo... Tinham sido construídos em escala real
e vestiam luxuosos trajes de gala de baile de máscaras, que o tempo tinha
transformado em farrapos. Mas havia neles alguma coisa que os unificava, que
lhes dava uma estranha qualidade que indicava uma origem comum. Estão
inacabados, descobri. Marina captou no acto o que eu estava querendo dizer.
Alguma coisa faltava em cada um daqueles seres. O policial não tinha braços. A
bailarina não tinha olhos, só duas órbitas vazias.. O mago não tinha boca, nem
mãos... Examinamos as figuras balançando-se na luz espectral. Marina se
aproximou da bailarina e examinou-a cuidadosamente. Apontou uma pequena marca na
sua testa, bem em baixo da raiz do seu cabelo de boneca. A borboleta negra, de novo.
Marina estendeu a mão para a marca. Seus dedos tocaram o cabelo e Marina
retirou a mão bruscamente. Percebi que era um gesto de repugnância. É cabelo...,
de verdade, disse.
Impossível.
Começamos a examinar cada uma das
sinistras marionetes e encontramos a mesma marca em todas elas. Accionei outra
vez a alavanca e o sistema de roldanas levantou os corpos de novo. Vendo-os
subir assim, inertes, pensei que eram almas mecânicas que partiam para se unir
ao seu criador. Parece que tem alguma coisa ali, disse Marina, nas minhas costas.
Virei e vi que estava apontando para um canto da estufa, onde se distinguia uma
velha escrivaninha. Uma fina capa de poeira cobria a superfície. Uma aranha
passou correndo deixando um rastro de minúsculas pegadas. Ajoelhei e soprei a
película de pó. Uma nuvem cinzenta se ergueu no ar. Sobre a escrivaninha havia um
volume com encadernação de couro, aberto no meio. Com uma linda caligrafia,
lia-se por baixo de uma velha fotografia de cor sépia colada no papel: Aries,
1903. A imagem mostrava duas meninas siamesas unidas pelo tronco. Exibindo
vestidos de gala, as duas irmãs ofereciam à câmera fotográfica o sorriso mais
triste do mundo.
Marina virou as páginas. O caderno
era um álbum de fotografias normal e corriqueiro. Mas as imagens que continha nada
tinham de normal e menos ainda de corriqueiro. A imagem das meninas siamesas
era um prelúdio. Os dedos de Marina viraram uma folha atrás da outra para
contemplar as fotos, com uma mistura de fascínio e repulsa. Dei uma olhada e
senti um estranho formigamento na espinha dorsal. Fenómenos da natureza, murmurou
Marina. Pessoas com má formação, que antigamente eram relegadas aos circos... O
reverso obscuro da natureza exibia o seu rosto monstruoso. Almas inocentes
presas no interior de corpos horrivelmente deformados. Por alguns minutos,
passámos as páginas daquele álbum em silêncio. Uma a uma, as fotografias
mostravam, sinto dizer isso, criaturas de pesadelo. Contudo, as deformações físicas
não conseguiam ofuscar os olhares de desolação, de horror e solidão que ardiam
naqueles rostos.
Meu Deus..., sussurrou Marina. As
fotografias eram legendadas, com o ano e a procedência da foto: Buenos Aires,
1893. Bombaim, 1911. Turim, 1930. Praga, 1933... Era difícil para mim adivinhar
quem, e porque, havia reunido semelhante colecção. Um catálogo do inferno. Finalmente,
Marina tirou os olhos do livro e se afastou nas sombras. Tratei de fazer o mesmo,
mas me sentia incapaz de me afastar da dor e do horror que aquelas imagens
transpiravam. Poderia viver mil anos e nunca esqueceria o olhar de cada uma
daquelas criaturas. Fechei o livro e virei para Marina. Ouvi a sua respiração na
penumbra e senti-me insignificante, sem saber o que fazer, o que dizer. Alguma
coisa naquelas fotos tinha perturbado Marina profundamente.
Está tudo bem?, perguntei. Marina
fez que sim em silêncio, com os olhos quase fechados. De repente, alguma coisa
ressoou na sala. Explorei o manto de sombras que nos cercava. Ouvi de novo
aquele som inclassificável. Hostil. Maligno. Foi então que senti um cheiro de podre,
nauseabundo e penetrante. Vinha da escuridão, como o hálito de um animal
selvagem. Tive a certeza de que não estávamos sozinhos. Havia mais alguém ali. Observando-nos.
Petrificada, Marina contemplava a muralha de trevas. Peguei a sua mão e guiei-a
até a saída». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
Cortesia de PlanetaE/JDACT