Cortesia
de wikipedia e jdact
Deixo
os livros para Neleu
«(…) Era filho daquele Corisco frequentemente
citado por Aristóteles nas suas aulas, quando queria indicar, com um nome
próprio, um sujeito concreto. Quando morreu Platão, Corisco deixara a Academia
junto com Aristóteles, e com ele se retirara para Axo, não distante de Scepsi,
junto a um dinasta local, ex-escravo e eunuco, tendo depois se tornado influente
devido às ligações estabelecidas com Filipe da Macedónia, de quem era a
quinta-coluna no império persa. Mas alguém o traíra; o rei da Pérsia,
capturando-o, massacrou-o sem conseguir arrancar-lhe uma única informação útil.
Em honra da sua morte, Aristóteles compôs um hino que exprime emoção e
admiração: o hino à virtude. O próprio Aristóteles tivera uma forte ligação com
esse ambiente: o tutor que se encarregara dele após a morte do pai Nicómaco,
Próxeno de Atarneu, era um conterrâneo de Hérmia e Corisco. Em suma, Neleu
podia se gabar de laços hereditários de amizade com Aristóteles e com um
ambiente que fora muito importante para ele. Portanto, Teofrasto tinha boas
razões para supor que o seu sucessor na direcção da escola seria justamente
Neleu. Foi por isso que decidiu legar-lhe pessoalmente aqueles bens
inestimáveis que eram os livros de Aristóteles.
Ao que parece, eram aqueles livros que se foram formando
nas aulas de Aristóteles, com a activa participação dos alunos, a partir de, e
durante, seus ensinamentos. Eram exemplares únicos, testemunho, reelaborado e
enriquecido ao longo do tempo, de uma reflexão em andamento, nunca confiada a livros
destinados ao exterior. Preciosos exemplares reservados ao uso da escola, sendo
justo que fossem confiados a um único e honrado responsável, o provável futuro director
escolar. Mas Neleu não foi eleito director. Muitas coisas tinham mudado na
escola desde que Demétrio fugira para o Egipto. Com o governo para-democrático
do Poliorceta, a vida para os antigos protegidos de Falereu não deve ter
sido muito fácil. Tanto que, para dirigir a escola, o escolhido foi o próprio Estrabão,
que na corte ptolomaica havia sido preceptor do herdeiro ao trono, uma ligação
que deve ter pesado no momento da eleição. Neleu, ofendido, retirou-se para a sua
cidade natal, Scepsi, com o seu precioso carregamento de livros.
A escola sofreu muito com isso. Era um
empobrecimento irreparável. Não que ignorassem, os princípios gerais do pensamento
do mestre; pelo contrário, paráfrases havia de sobra, começando pelas bastante
prolixas do próprio Teofrasto, que sempre envolvera em muitos véus aristotélicos
aquilo que trazia de novo e próprio. Mas já não possuíam, devido à abrupta
decisão de Neleu, os desenvolvimentos específicos, o encadeamento das deduções
como viera se construindo em anos e anos de reflexão: devido àquele procedimento
característico de Aristóteles que consistia em recomeçar, algum tempo depois, a
partir de um mesmo assunto, uma nova reflexão que a rigor deveria minar a anterior,
mas que por escrúpulo, devoção ou talvez até prudência os ouvintes e
participantes do incessante trabalho haviam preferido justapor às camadas
anteriores, criando uma devota confusão cujo deslindamento coube a outros, séculos
depois, Por ora, os peripatéticos estavam reduzidos a formular proposições
gerais, restritos, como disse gracejando um especialista como o gramático
Tiranião, a uma repetitiva pomposidade tão genérica quanto vazia. Razão pela
qual homens como Epicuro, que aos vinte anos chegou a Atenas, no ano da morte
de Aristóteles, e Zenão só encontraram pela frente a obra menos original do
mestre, que ele próprio publicara em vida sob a forma canonicamente platónica
do diálogo». In Luciano Canfora, A
Biblioteca Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, 1986, Companhia
das Letras, 1989,ISBN 978-857-164-051-1.
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