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Jerusalém
«(…) Senta-te, ordenou o dono da
casa, apontando na direcção de um cadeirão idêntico ao seu. O estrangeiro, mais
uma vez, voltou a acatar a ordem, quase sem raciocinar, obedecendo à ordem ou
pedido sem saber se por sua própria vontade ou não. Pousou a mala sobre o colo.
Queres juntar a tua presença à de Abu Rashid, disse o velho. Sim, respondeu o
estrangeiro, apesar de não ter sido proferida nenhuma pergunta. Sabe onde mora?,
deu por si a perguntar como uma criança que pede um rebuçado. Ele anda sempre
por aí, limitou-se a dizer. Qual é o teu assunto com ele?, perguntou sem
cerimónia. O estrangeiro decidiu não fazer segredo das suas intenções, apesar
da devida reserva atrás da qual se deveria proteger. Porém, subia por si acima
um sentimento cognitivo de que se mentisse o velho saberia. Sou o emissário de
Roma, informou num tom grave, evidenciando o profissionalismo e competência que
se exigem a um homem do seu calibre. Vim investigar as alegadas visões de Abu
Rashid. Alegadas? O velho inclinou-se para a frente, agarrando-se aos braços do
cadeirão com uma expressão inquisitiva e desconfiada. Por acaso Roma pensa que
é uma lenda? Em Roma ainda não se pensa nada. Por isso me enviaram, explicou o estrangeiro,
sentado na beira do cadeirão, tentando manter as costas erectas. Existem várias
versões acerca dos feitos e visões de Abu Rashid. Estou aqui para avaliar o
caso e sancionar a abertura de uma comissão de investigação, se vier a ser
necessário. O silêncio interpôs-se com a entrada não anunciada da jovem esposa,
que segurava um tabuleiro, em que o vapor da água, misturado com as folhas de
menta, inundavam o ambiente, já de si repleto de odores almiscarados. Não se
tinha esquecido do lenço sobre a cabeça, pois ainda havia visitas. Pousou o
tabuleiro em cima de uma pequena mesa escura e redonda, encostada a uma parede
e desceu a boca do bule fumegante primeiro sobre a chávena do esposo, verteu o
líquido esverdeado e deitou seis colheres de açúcar.
Devotamente, depositou pires e
chávena na mão dele, que lhe pegou, quase inconscientemente, sem dispensar um
olhar à mulher, que só então foi preparar o mesmo para o visitante. O velho
sorveu um pouco do chá fervido, sem esboçar nenhum incómodo pela temperatura
elevada e sem tirar os olhos do estrangeiro, que recebeu da dedicada esposa a
porcelana com conteúdo idêntico, que agradeceu. E consideras necessário
sancionar essa comissão?, inquiriu o velho, logo após a esposa sair da sala. Ainda
não sei. Cheguei há poucas horas e é a primeira paragem que faço, esclareceu. Compreendo.
Mas com certeza fizeste o teu próprio juízo de valor acerca do que já ouviste
sobre Abu Rashid, prosseguiu o muçulmano. Achas necessário? Havia uma certa
boçalidade no dono da casa que incomodava o estrangeiro, aliada à maneira como
o olhava e ao inquérito descarado de que era alvo. Contudo, por incrível que
pudesse parecer, a aura de mistério cativante continuava a rodeá-lo, invisível,
poderosa. Quem é este homem?, lembra-se de ter pensado na altura. Decidiu
responder.
É certo que os relatos parecem um
pouco fantasiosos, estamos a falar de alguém que, ao que parece, tem o dom de
curar o, cientificamente, incurável. Parece que salvou trinta pessoas, depois
de elas se terem afogado. E que ele próprio se afogou e ressuscitou. Mas
existem inúmeros exemplos na História de pessoas que possuíam o dom da cura,
uns mais credíveis do que outros… Portanto, até que veja e avalie, não posso admitir
qualquer juízo de valor da minha parte, terminou com uma sorvedela muito ligeira
para não queimar a língua. Era um chá muito forte e excessivamente açucarado. O
outro deixou que a atenção do estrangeiro recaísse sobre si. Esperava nova pergunta,
certamente, mas não acederia à previsibilidade, particularidade alheia ao seu feitio.
Sei muito bem quem é Abu Rashid, começou, por fim, o velho,
desviando o olhar para as suas reminiscências. Um homem santo, capaz de curar
os vivos… E os mortos. Os mortos?, perguntou o estrangeiro, agitando-se,
desconfortavelmente, no cadeirão. Isso não me parece muito verosímil,
arriscou-se a confessar. Ah, mas é verdade, asseverou, olhando o vazio. A mais
pura verdade. O timbre da voz do muçulmano alterou-se sobremaneira. Os modos
racionais e inquiridores foram arredados por outros mais introspectivos,
revivalistas, demonstradores de respeito e até alguma veneração, letárgicos
também, de alguém que olha outro mundo, reclinado no cadeirão de braços. Terei
de confirmar, contrapôs o estrangeiro evasivamente». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa,
Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.
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