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e jdact
«(…) Não digas nada,
disse o outro, arreliado. Para teu bem, espero que tenha começado o Apocalipse
segundo São João. Lançou-lhe um olhar ameaçador que não era difícil concretizar
àquela hora. Espera aqui. Venho já. E fechou a porta na cara do rapaz. Vinte
minutos depois, que fizeram o rapaz pensar várias vezes se havia de arriscar
tocar à campainha novamente ou não, saíram os dois para o ar frio da Via
Britannia e entraram numa viatura Fiat com matrícula SCV, indicadora de
pertença do Estado Cidade do Vaticano. Já nem se respeitam as segundas-feiras,
resmungou Jacopo antes de o carro arrancar. O jovem ia corrigi-lo e dizer-lhe
que, tecnicamente, já era terça mas achou melhor permanecer calado. Roma era
uma cidade que dormia de noite, como Jacopo, sem grandes alaridos. Os locais de
diversão nocturna estavam muito bem definidos e ganhavam vida por norma às
sextas, como Jacopo e Norma, aos sábados e nas vésperas de feriado. Àquela hora
só se via aqueles que não podiam fugir ao trabalho e a libertinagem que
vagabundeava pela noite. Noutros tempos, passaria o resto da curta viagem a
perguntar-se sobre as razões de tão inesperada requisição mas, desta vez, limitou-se
a puxar o chapéu para a frente dos olhos e ignorou o rapaz e o motorista. Via
Cesare Balbo, à direita para a Via Panisperna, novamente à direita pela Via
Milano e depois à esquerda para a Via Nazionale. Nem precisava de ver. Conhecia
a cidade como as próprias mãos.
Jacopo Sebastiani já passara os
60 anos, era um descrente ao serviço da crença, eminente especialista em
religiões comparadas, o que quer que isso significasse, historiador, paleógrafo
e mais umas quantas qualificações de menor importância. Por vezes, o Santo
Padre requisitava a sua sabedoria para um parecer idóneo ou para enviá-lo para
onde Judas perdera as botas em busca de uma autenticação ou aquisição difícil.
Sempre o servira com competência e lealdade, mas sem nunca silenciar o que lhe
ia na alma, fosse o que fosse. Não poupava os seus pensamentos a ninguém, nem
mesmo ao Papa. Que raio de documento não podia esperar pelas nove da manhã? Ao
fim de um quarto de hora, passaram a ponte Vittorio Emanuele II, sobre o Tibre,
e, minutos depois, entraram no Estado do Vaticano pela Porta de Sant’Anna. O
guarda-suíço, que enfrentava o frio com um capote preto por cima do uniforme
azul, fez-lhes a continência e permitiu-lhes a passagem. Jacopo nem o viu, pois
só despertou quando o carro estacionou nas imediações do Palácio Apostólico
mergulhado na penumbra e no silêncio. Jacopo conhecia muito bem aquele caminho.
Mal-humorado, seguiu o tímido rapaz e entraram no palácio pelo Pátio de São
Dâmaso.
Ao contrário do que as pessoas
pensavam, o Palácio Apostólico não era na realidade um palácio, mas um complexo
de palácios interligados. Para seu espanto entraram na residência papal e não no
edifício da Secretaria de Estado. Subiram pelo elevador de serviço e saíram
para o imenso corredor do segundo andar. Um homem de fato preto aguardava-os.
Era Guillermo Tomasini. A culpa disto é tua?, lamuriou-se Jacopo. Boa noite,
também para ti, Jacopo. Boa noite o raio que te parta. Aposto que isto é culpa
tua. Não tenho nada a ver com isto. Tu? Olha quem, atirou Jacopo com um olhar
furioso. Estás metido em tudo e fazes de conta que não é nada contigo.
Guillermo sorriu. Conhecia Jacopo
há muitos anos. Sabia como ele era capaz de explodir extemporaneamente. Também
sabia que passava depressa. O homem desviou o olhar para o jovem. Obrigado,
Filippo. Podes ir descansar. O imenso corredor estava repleto de tapeçarias
gigantes nas paredes. Estavam nos apartamentos papais, não significando isso que
iam ver o Papa. Os apartamentos ocupavam o segundo e o terceiro andares. O terceiro
era o da residência do Santo Padre, onde ele devia estar a dormir o sono dos
anjos e dos apóstolos. Aquele onde estavam era onde o Papa e os seus
colaboradores trabalhavam, a horas próprias e não àquela em que Jacopo ali
estava. Várias estátuas enfileiravam-se de ambos os lados. Pontífices do
passado que os observavam com expressões austeras». In Luís
Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
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