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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…)
Sim, lembro-me do ciclone que fustigou Lisboa naquela noite de 15 de
Fevereiro de 1941. As rajadas ultrapassaram os 120 quilómetros por hora! Os
barómetros caíram na vertical, e em pouco tempo, até aos 718 milímetros, coisa
nunca vista em Portugal, e subiram depois, com idêntica rapidez, a 750. Em
menos de 24 horas, desceram 40 milímetros e subiram mais de 30! O Tejo
revoltou-se em tremendas vagas. Em terra, árvores foram derrubadas, voaram telhados
e coberturas de zinco, e nos subúrbios chegaram a morrer pessoas, sugadas pela força
dos ventos, que deixavam no chão enormes crateras. Dizem que certas almas
reflectem o estado do tempo, alegrando-se quando está sol ou entristecendo-se
quando chove. Terá sido esse o caso de Mary, cujo turbilhão sentimental parecia
espelhar o ciclone? Já a tinha visto umas vezes, por ocasião dos cocktails que
o embaixador Campbell oferecia, mas apenas trocara com ela palavras breves de
cortesia. Naquela noite, fiquei sentado a seu lado à mesa do jantar. Certamente
falámos de Hitler, Tobruk, dos japoneses a avançarem no Pacífico, e claro que
falámos de Salazar. Falava-se sempre de Salazar nos jantares ingleses, e
normalmente em tom crítico. Mas o que verdadeiramente recordo é o seu pedido
surpreendente, à saída da Embaixada, quando o jantar acabou. Podias dar-me uma
boleia... Estávamos à porta do edifício, e o vento zumbia com fúria. Devo ter
feito uma cara ligeiramente contrariada, por causa do vento, mas Mary deve ter
pensado que fora o seu pedido que me incomodara, pois exclamou: não faças essa
cara, eu chamo um táxi! Desfiz-me em desculpas. Entre as inglesas tinha
reputação de cavalheiro, e aquele mal-entendido obrigava-me a desfazer o
equívoco, para evitar um possível dano à minha fama. Eu levo-te. Vamos, disse
eu. Ela fechou o casaco e enfiou um chapéu. Saímos pelo portão da Embaixada,
sem falar, de braço dado e encostados um ao outro, numa intimidade forçada pela
tempestade. Subimos a rua, e virámos para a Rua do Sacramento, onde deixara o
carro.
Quando me sentei ao volante do
meu Citroen azul, perguntei: o coronel Bowles não está cá? Mary sorriu e
observou o cruzamento com a Rua do Pau da Bandeira. Depois suspirou: hoje, não
há ninguém a ver ninguém, Jack Gil. Agora que estou aqui, a passear numa noite
quente da Lisboa de fim de século, não posso deixar de estranhar esta calma da
Lapa, só quebrada pela passagem de um ocasional carro. Há 50 e tal anos, este
era um dos cruzamentos mais animados de Lisboa. Viam-se homens encostados aos
carros, às soleiras das portas; táxis parados, com os condutores lá dentro a
fumarem; e até vendedores ambulantes a apregoarem os seus produtos. Vigilantes.
Controladores. Portugueses a soldo de terceiros, a fingirem que eram portugueses
que estavam ali por acaso, mas sem enganarem ninguém. Uns pagos pelos alemães,
outros pagos pelos ingleses, para espiarem as entradas e as saídas das
embaixadas. Era uma ironia do destino que as duas principais embaixadas
beligerantes daquela guerra, a alemã e a inglesa, ficassem praticamente a lado,
separadas por menos de 500 metros. Um mundo de distâncias e apenas umas
calçadas portuguesas de permeio! Era quase cómico. Mas também o ambiente de
Lisboa, em 1941, era quase cómico. Por momentos, pensei em dizer tragicómico,
mas o trágico seria exagero. Trágico era o que se passava em Inglaterra, com os
bombardeamentos das cidades. Trágico era o que se passava no Norte de África,
com a guerra no deserto. Ali, nas ruas de Lisboa, a guerra não era A GUERRA,
com mortos e feridos. Era uma guerra diferente: era o eco de uma guerra, eram
os despojos de uma guerra, eram os absurdos políticos e económicos de uma
guerra, era a psicologia negra de uma guerra, mas não era A GUERRA.
Sim, confirmei, olhando para o
cruzamento, hoje não há ninguém. O vento era tão forte que afastara a resolução
dos homens portugueses em espiarem os estrangeiros. Não lhes pagam o suficiente
para andarem na rua com este tempo, comentou Mary. Desci a Rua do Pau da
Bandeira, e depois subi a de São Caetano. Mary, nervosa, acendera um cigarro
mal entrara no carro. O que sabia eu sobre ela? Pouco. Sabia que trabalhava na Embaixada,
provavelmente para o MI9. O meu amigo Michael contara-me que ela ia muitas vezes
ao Alentejo ou ao Algarve recolher pilotos ingleses que passavam a fronteira de
Espanha, ou que vinham de barco de Marrocos, e que depois organizava os
regressos deles a Inglaterra.
E sabia que Mary era a mulher do
coronel James Bowles. Se eu tivesse sabido antes da sua infelicidade, teria
podido explicar a razão de a sua alma me parecer afectada pelo ciclone. Mas,
naquela noite, ali dentro do Citroen, na Rua de Buenos Aires, não sabia que ela
era infeliz. O James nunca cá está, afirmou Mary. Soltou a frase não como um
lamento, apenas como a notícia tranquila de um facto. Mais tarde, vim a
perceber que esta indiferença de Mary era uma mistificação. Ela forçava-se a declarações
frias, isentas de sentimentos, para esconder o que lhe ia no coração. Típico de
inglesa. Anda pelo Alentejo, acrescentou». In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia,
2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT