sábado, 25 de janeiro de 2020

A Eternidade e o Desejo. Inês Pedrosa. «Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade»

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«(…) Vieira não precisava de nada nem de ninguém. No fundo, acho que lhe bastava a consciência de que tinha Deus dentro de si, ou a eternidade, ou o conhecimento, como preferires. Era um precursor; fervia-lhe no peito uma verdade e só com ela tinha ligação. Essa verdade libertava-o da dor comum, sentia as injustiças e ofensas, e não foram poucas as que lhe fizeram. Vingava-se, convertendo em palavras escritas a experiência da mesquinhez humana. Vingava-se, gritando do púlpito esses sermões irados, consciente de que não conseguiria reformar os costumes do seu tempo, mas ainda mais consciente de que esses textos, ateados por uma raiva íntima e incendiados pela lucidez genérica que consagra as paixões particulares, lhe sobreviveriam. Trabalhava como se vivesse no futuro, e por isso escreveu coisas que ainda hoje são arrumadas no altar dos prodígios, e adoradas pelo exterior do seu entendimento. Eu própria o adorava assim, pela pintura do texto e pela música da sintaxe, aquele amor reverente, escolar, cheio de presunção e desconhecimento, que se vota às ruínas do passado. Até que me apareceu outro António, o António que trouxe Vieira para dentro da minha vida, mas ainda é cedo para essa confidência. Como poderei falar-te, a ti, menino solene, mimado pelo aborrecimento do universo, desse olhar impermeável à ofuscação das lágrimas, no olhar de uma criança sem tédio?
O círculo do tempo pára numa nova idade barroca, trabalhamos o supérfluo, a ideia de arte vale mais do que a arte, a ideia de cultura separa-se da cultura possível e particular de cada um, em rendilhados infinitos, citação da citação da citação, fragmento do fragmento do fragmento, intermitências de luz cosidas em  brocados de sombra, a religião da ironia substituindo perfeitamente a religião dos deuses. Tornas a dizer que exagero, que há uma diferença essencial entre o livre arbítrio e a sujeição a livros sagrados, entre o ritual da irrisão e o ritual da oração, mas, talvez porque estou cega, ouço um mesmo rasgar de sedas, um mesmo uivar de andrajos, um mesmo pavor animal gemendo sob a aparência humana. Pois não sentes a irracionalidade que grita no desejo de dominação humano? Não sentes a sede de domínio atrofiando todas as possibilidades de prazer? Não sentes que temos a cabeça a prémio?
Não me entendes, caríssimo Sebastião; dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti. Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele. É isso que vejo, Sebastião.
Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude, o lugar mais rápido, inseguro e variável da existência humana. O lugar do querer ser. Não vês o contra-senso que isto representa? A violência? A prisão? Não, não vês, como eu não via. Pertencer a um país que de antigo se tornou velho também não ajuda a ver. Só através dos olhos desse António que veio do Brasil eu comecei a ver. Nos olhos dele aprendi a ler Vieira, como no seu corpo aprendi a saborear o desejo infinito, o desejo como experiência da eternidade. Para essa experiência não tenho palavras. Nem sequer silêncio. Dessa experiência, sobrou-me o que sou. A tudo o que te vou dizendo sobre a superfície lisa do Barroco e a superfície barroca do nosso tempo aparentemente liso respondes-me com o discurso contemporâneo do progresso relativo, a música electrónica do humanismo de salão. Tolerância, dizes, tudo passa pela educação para a tolerância. Sim, Sebastião, és um homem de bem, de esquerda, um guardador de valores perdidos e de amanhãs desvirtuados». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT