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Vieira não precisava de nada nem de ninguém. No fundo, acho que lhe bastava a consciência
de que tinha Deus dentro de si, ou a eternidade, ou o conhecimento, como
preferires. Era um precursor; fervia-lhe no peito uma verdade e só com ela
tinha ligação. Essa verdade libertava-o da dor comum, sentia as injustiças e
ofensas, e não foram poucas as que lhe fizeram. Vingava-se, convertendo em palavras
escritas a experiência da mesquinhez humana. Vingava-se, gritando do púlpito
esses sermões irados, consciente de que não conseguiria reformar os costumes do
seu tempo, mas ainda mais consciente de que esses textos, ateados por uma raiva
íntima e incendiados pela lucidez genérica que consagra as paixões
particulares, lhe sobreviveriam. Trabalhava como se vivesse no futuro, e por
isso escreveu coisas que ainda hoje são arrumadas no altar dos prodígios, e
adoradas pelo exterior do seu entendimento. Eu própria o adorava assim, pela
pintura do texto e pela música da sintaxe, aquele amor reverente, escolar,
cheio de presunção e desconhecimento, que se vota às ruínas do passado. Até que
me apareceu outro António, o António que trouxe Vieira para dentro da minha
vida, mas ainda é cedo para essa confidência. Como poderei falar-te, a ti,
menino solene, mimado pelo aborrecimento do universo, desse olhar impermeável à
ofuscação das lágrimas, no olhar de uma criança sem tédio?
O círculo do tempo pára numa nova
idade barroca, trabalhamos o supérfluo, a ideia de arte vale mais do que a
arte, a ideia de cultura separa-se da cultura possível e particular de cada um,
em rendilhados infinitos, citação da citação da citação, fragmento do fragmento
do fragmento, intermitências de luz cosidas em
brocados de sombra, a religião da ironia substituindo perfeitamente a
religião dos deuses. Tornas a dizer que exagero, que há uma diferença essencial
entre o livre arbítrio e a sujeição a livros sagrados, entre o ritual da irrisão
e o ritual da oração, mas, talvez porque estou cega, ouço um mesmo rasgar de
sedas, um mesmo uivar de andrajos, um mesmo pavor animal gemendo sob a aparência
humana. Pois não sentes a irracionalidade que grita no desejo de dominação
humano? Não sentes a sede de domínio atrofiando todas as possibilidades de
prazer? Não sentes que temos a cabeça a prémio?
Não me entendes, caríssimo Sebastião;
dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje
dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização,
dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando,
como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti.
Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda
nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e
apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora
vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet
em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos
outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair
dele. É isso que vejo, Sebastião.
Som e sentido, continente e conteúdo
dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica
da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia
de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião.
A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude, o lugar mais rápido,
inseguro e variável da existência humana. O lugar do querer ser. Não vês o
contra-senso que isto representa? A violência? A prisão? Não, não vês, como eu
não via. Pertencer a um país que de antigo se tornou velho também não ajuda a
ver. Só através dos olhos desse António que veio do Brasil eu comecei a ver.
Nos olhos dele aprendi a ler Vieira, como no seu corpo aprendi a saborear o
desejo infinito, o desejo como experiência da eternidade. Para essa experiência
não tenho palavras. Nem sequer silêncio. Dessa experiência, sobrou-me o que
sou. A tudo o que te vou dizendo sobre a superfície lisa do Barroco e a superfície
barroca do nosso tempo aparentemente liso respondes-me com o discurso contemporâneo
do progresso relativo, a música electrónica do humanismo de salão. Tolerância,
dizes, tudo passa pela educação para a tolerância. Sim, Sebastião, és um homem
de bem, de esquerda, um guardador de valores perdidos e de amanhãs desvirtuados».
In
Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN
978-972-203-495-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT