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«(…) Lindo menino. Antes a
tolerância do que as fogueiras da Inquisição (maldita), dizes tu. Bem
sei que as comparações acalmam, também para isso me fazem falta os olhos. Mas
se reparares, bom Sebastião, o cadáver da Inquisição (maldita) ainda revolve a
terra em que pretendemos tê-lo enterrado. As vezes cansa-me falar contigo,
Sebastião, tens as ideias demasiado arrumadinhas, como numa vitrine, proibido
tocar. Portugal está cheio de gente assim, parece um museu de frases
consensuais pronunciadas por gente de olhar escorregadio. Porque será assim
inclinado o olhar dos portugueses? Vício de guerreiros, ardil de resistência
aos cercos, excesso da imaginação? Tu que ainda tens olhos, Sebastião,
repararás que os brasileiros, em geral, te olham nos olhos quando falam
contigo. Esse olhar franco poupa muitas palavras, para o melhor e para o pior.
Existe uma empatia imediata, que até da antipatia faz uma questão de lealdade.
António Vieira olhava assim, com uma frontalidade bruta, de precipício. Olhava
para o futuro e não tremia, lançava o pensamento sobre as muralhas do mundo,
fixado no azul do céu. Era um pensamento irrequieto, incessante, incontrolável,
o seu. Mas foi a arte que o safou. Safou-o de quê?
Do esquecimento. A Inquisição (maldita) bem tentou, e a
dada altura conseguiu amordaçá-lo, mas não conseguiu queimar-lhe os escritos.
Aí estão, até hoje, encandeando-nos com o seu esplendor ainda indecifrado.
Exageras; o padre António Vieira é estudado nas escolas. Meia dúzia de textos,
sim, sempre os mesmos, e os mais circunstanciais. Essa é a forma contemporânea
de agrilhoar um autor: interpretar-lhe um pedaço da obra até à última letra,
sugar-lhe a matéria temporal, estendê-la em cátedras
até lhe esgotar o sopro.
Compará-lo, medi-lo, debitá-lo, e esquecê-lo. Tu não o esqueceste.
Não, Sebastião, não o esqueci, e
também por isso não sei dizer-te quem ele é, digo-te que é belo, esperando que
isso te perturbe e te irrite e te conduza até ele, se for esse o teu caminho.
Sei que lhe devo a raiva, a constância, e, acima de tudo, o privilégio da
alegria. Mais uma vez, respondes que me invejas. Estou cansada da tua inveja de
cartolina, Sebastião; peço-te que não estragues com graças pequenas a Graça do
que partilho contigo. Não sabes a Graça que há nas graças pequenas. Não sonhas
como preciso dela. Dá-me a tua mão, e guarda nela agora o meu silêncio. Há-de
servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve a vista: o
aço serve a vista; porque rebate e lança de si as espécies de quem se vê ao
espelho; de maneira que o mesmo que impede o conhecimento directo, serve ao
conhecimento reflexo. Assim é no homem o conhecimento de si mesmo; separa no
corpo, ignora-se; se reflecte sobre a alma, conhece-se; saia logo do corpo, e
sacuda-se do pó, se quer conhecer-se: si ignoras te egredere.
E se alguém me perguntar a razão
desta filosofia, porque o homem visto pela parte do corpo se ignora, e visto ou
considerado pela parte da alma se conhece; a razão clara e fácil (posto que
pareça injuriosa) é, porque quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê
ao homem. Estamos já no avião, no avião onde me levas para um mundo que te
recusas a desvendar-me. Os teus dedos agitam-se como nós de luz sobre o teu
outro pulso. Folheio uma revista, para conter a tentação de agarrar cada um
desses teus dedos pequenos, irrequietos, irresistivelmente pragmáticos.
Pergunto-te o que fazes, respondes-me que vês as horas. Explicas-me que
levantas a patilha do relógio e lês as horas com as pontas dos dedos.
Perguntas-me se nunca tinha visto um relógio para invisuais». In
Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN
978-972-203-495-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT