domingo, 26 de janeiro de 2020

A Eternidade e o Desejo. Inês Pedrosa. «Explicas-me que levantas a patilha do relógio e lês as horas com as pontas dos dedos. Perguntas-me se nunca tinha visto um relógio para invisuais»

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«(…) Lindo menino. Antes a tolerância do que as fogueiras da Inquisição (maldita), dizes tu. Bem sei que as comparações acalmam, também para isso me fazem falta os olhos. Mas se reparares, bom Sebastião, o cadáver da Inquisição (maldita) ainda revolve a terra em que pretendemos tê-lo enterrado. As vezes cansa-me falar contigo, Sebastião, tens as ideias demasiado arrumadinhas, como numa vitrine, proibido tocar. Portugal está cheio de gente assim, parece um museu de frases consensuais pronunciadas por gente de olhar escorregadio. Porque será assim inclinado o olhar dos portugueses? Vício de guerreiros, ardil de resistência aos cercos, excesso da imaginação? Tu que ainda tens olhos, Sebastião, repararás que os brasileiros, em geral, te olham nos olhos quando falam contigo. Esse olhar franco poupa muitas palavras, para o melhor e para o pior. Existe uma empatia imediata, que até da antipatia faz uma questão de lealdade. António Vieira olhava assim, com uma frontalidade bruta, de precipício. Olhava para o futuro e não tremia, lançava o pensamento sobre as muralhas do mundo, fixado no azul do céu. Era um pensamento irrequieto, incessante, incontrolável, o seu. Mas foi a arte que o safou. Safou-o de quê?
Do esquecimento. A Inquisição (maldita) bem tentou, e a dada altura conseguiu amordaçá-lo, mas não conseguiu queimar-lhe os escritos. Aí estão, até hoje, encandeando-nos com o seu esplendor ainda indecifrado. Exageras; o padre António Vieira é estudado nas escolas. Meia dúzia de textos, sim, sempre os mesmos, e os mais circunstanciais. Essa é a forma contemporânea de agrilhoar um autor: interpretar-lhe um pedaço da obra até à última letra, sugar-lhe a matéria temporal, estendê-la em cátedras
até lhe esgotar o sopro. Compará-lo, medi-lo, debitá-lo, e esquecê-lo. Tu não o esqueceste.
Não, Sebastião, não o esqueci, e também por isso não sei dizer-te quem ele é, digo-te que é belo, esperando que isso te perturbe e te irrite e te conduza até ele, se for esse o teu caminho. Sei que lhe devo a raiva, a constância, e, acima de tudo, o privilégio da alegria. Mais uma vez, respondes que me invejas. Estou cansada da tua inveja de cartolina, Sebastião; peço-te que não estragues com graças pequenas a Graça do que partilho contigo. Não sabes a Graça que há nas graças pequenas. Não sonhas como preciso dela. Dá-me a tua mão, e guarda nela agora o meu silêncio. Há-de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve a vista: o aço serve a vista; porque rebate e lança de si as espécies de quem se vê ao espelho; de maneira que o mesmo que impede o conhecimento directo, serve ao conhecimento reflexo. Assim é no homem o conhecimento de si mesmo; separa no corpo, ignora-se; se reflecte sobre a alma, conhece-se; saia logo do corpo, e sacuda-se do pó, se quer conhecer-se: si ignoras te egredere.
E se alguém me perguntar a razão desta filosofia, porque o homem visto pela parte do corpo se ignora, e visto ou considerado pela parte da alma se conhece; a razão clara e fácil (posto que pareça injuriosa) é, porque quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem. Estamos já no avião, no avião onde me levas para um mundo que te recusas a desvendar-me. Os teus dedos agitam-se como nós de luz sobre o teu outro pulso. Folheio uma revista, para conter a tentação de agarrar cada um desses teus dedos pequenos, irrequietos, irresistivelmente pragmáticos. Pergunto-te o que fazes, respondes-me que vês as horas. Explicas-me que levantas a patilha do relógio e lês as horas com as pontas dos dedos. Perguntas-me se nunca tinha visto um relógio para invisuais». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT