Cortesia
de wikipedia e jdact
A
Casa Azul na rua Londres
«(…) De
facto, Limantour escolheu bem: Guillermo Kahlo era um técnico obstinado, com um
ponto de vista teimosamente objectivo acerca daquilo que via; nas suas
fotografias, assim como nas pinturas da sua filha, não há lugar para truques,
efeitos nem ofuscações românticas. Ele tentava transmitir o máximo possível de
informações sobre a estrutura arquitectónica do lugar que registava com suas
lentes, seleccionando cuidadosamente o seu ponto de observação e usando luz e
sombra para delinear a forma. Um anúncio publicitário do seu trabalho, impresso
em inglês e espanhol, prometia: Guillermo Kahlo, especialista em paisagens,
edificações, interiores, fábricas etc., tira fotografias sob encomenda na
capital ou em qualquer outro lugar da República. Embora ocasionalmente fizesse
belos retratos de membros do governo Díaz e da sua própria família, ele
afirmava não querer fotografar pessoas, pois não desejava melhorar o que Deus
criara feio. Difícil afirmar se Guillermo tinha consciência do humor contido
numa frase como essa, mas, quando os contemporâneos de Frida fazem referência
ao pai da artista, quase sempre é das suas declarações que eles se lembram, e
em geral são máximas a um só tempo directas, sardónicas, e, de maneira
maravilhosamente fria e nem um pouco emotiva ou sentimental, engraçadas.
Isso não quer dizer
que o pai de Frida fosse um homem alegre, de coração leve. Pelo contrário, era
homem de poucas palavras, cujos silêncios tinham uma poderosa ressonância, e envolto
numa aura de amargura. Ele jamais se sentiu realmente à vontade no México e, embora
ansiasse por ser aceito como mexicano, nunca perdeu o forte sotaque alemão. Com
o passar dos anos, foi se ensimesmando cada vez mais. Frida se recordava de que
o pai tinha apenas dois amigos. Um era um velho largote [homem alto], que sempre deixava o chapéu em
cima do armário. Meu pai e o velho passavam horas tomando café e jogando xadrez.
Em 1936, Frida retratou o seu lugar de nascimento e a sua árvore genealógica na
deliciosamente estranha e extravagante pintura Meus avós, meus pais e eu. Ali ela aparece como uma
menininha (dizia ter por volta de dois anos de idade), nua, calma e controlada,
de pé no pátio da sua casa azul; a sua cadeirinha está a seus pés, e ela segura
uma fita vermelha, o seu sangue, que escora a árvore genealógica com a mesma
facilidade de um balão preso a um barbante. O retrato dos pais é baseado n sua
fotografia de casamento, em que o casal flutua no céu feito dois anjos,
emoldurados por uma auréola de nuvens. Essa antiquada convenção fotográfica
deve ter agradado a Frida: na sua tela, ela aninha o retrato dos avós em nuvens
semelhantes. Os avós maternos de Frida, o índio Antonio Calderón e a gachupina (de origem espanhola)
Isabel González y González, estão situados acima da mãe da pintora. Do lado paterno
há um casal europeu, Jakob Heinrich Kahlo e Henriette Kaufmann Kahlo. Acerca da
característica física mais notável de Frida não pode pairar dúvida: ela herdou
da avó paterna as sobrancelhas espessas e unidas. A pintora dizia ser
fisicamente parecida tanto com o pai como com a mãe: tenho os olhos do meu pai e o
corpo da minha mãe. Na tela em questão, Guillermo Kahlo tem um olhar inquieto,
penetrante, o mesmo olhar que, em toda a sua intensidade perturbadora,
apareceria novamente nos olhos da sua filha.
Frida copiou
fielmente da fotografia original cada prega, cada dobra, cada costura e cada laço
do vestido de casamento da mãe, criando um jocoso realce para o feto
cor-de-rosa, já bastante desenvolvido, que ela situou na virginal bainha
branca. O feto é Frida; o facto de que pode também ser uma referência à
possibilidade de que sua mãe já estava grávida quando se casou é uma ilustração
do típico prazer que Frida sentia pelos múltiplos significados. Abaixo do feto
há um falso retrato de casamento: um enorme espermatozoide, seguido por um
cardume de competidores menores, penetra um óvulo: Frida no momento da concepção.
Ao lado, outra cena de fecundação: um cacto carmesim, em formato de U,
abrindo-se para receber o pólen carregado pelo vento.
Frida situa a sua casa não no subúrbio, mas na planície salpicada
de cactos do platô central mexicano. À distância se estendem montanhas rasgadas
por ravinas, invariavelmente a mesma paisagem dos seus autorretratos; logo
abaixo da imagem de seus avós paternos vê-se o oceano. Os avós mexicanos são
simbolizados pela terra, Frida explicou; os avós alemães, pelo mar. Contíguo à
casa da família Kahlo, há um humilde lar mexicano; além, num campo, vê-se uma
habitação ainda mais primitiva, uma choça indígena de adobe. Numa visão
infantil, a artista incluiu todo o distrito de Coyoacán na sua própria casa, e
depois apartou-a da realidade, num ermo. A sensação é que Frida está de pé no
meio da casa, no meio do México, no meio do mundo». In Hayden Herrera, Frida, A Biografia,
1983, tradução de Renato Marques, Editora Globo, 2011, ISBN 978-852-505-353-4.
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