domingo, 26 de janeiro de 2020

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Pedra d’água, abismo, pedra-ferro como te chamas? Para que eu possa ao menos Soletrar teu nome, grudada à tua fundura»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Vazia
[…] VII
«Tu sabes que serram cavalos vivos
Para que fiquem macias
As sacolas dos ricos?
Tu gozas ou defecas
Diante do acto sem nome
O rubro dessa orgia?

VIII
Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.

IX
Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes.
Antiquíssima ave, marionete de penas
As asas que pensou lhe foram arrancadas.
Lavado de luzes, um deus me movimenta.
Indiferente. Bufo.

X
Pedra d’água, abismo, pedra-ferro
Como te chamas? Para que eu possa ao menos
Soletrar teu nome, grudada à tua fundura.

XI
Nos pauis, no pau-de-lacre,
Aquele de nervuras e de folhas brilhantes, transitas.
No pau-de-virar-tripa, só neste último, Pai
Eu sei que te demoras, meditando minha víscera.

XII
Águas de grande sombra, água de espinhos:
O Tempo não roerá o verso da minha boca.
Águas manchadas de um torpor de vinhos:
Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuo
O tempo não viverá se tocar a minha boca».

Alcoólicas
I
«É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

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