segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «… o embaixador comenta com o procurador: é mesmo estrábica, a noiva…, como irá El Rei reagir? El Rei?… Pois se já tinha adivinhado pelo retrato. De que retrato falais?»

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«(…) Pois montarás um ginete mais cedo do que julgavas. Mas antes seguirás perto de nós, talvez em cima de uma mula, na viagem até ao paço de Aljaferia. Teu primeiro zelo será para com as carências de minha montada, está bem assim? De outro modo melhor não estaria, minha rainha. Ri com gosto por eu lhe chamar assim. Nessa altura minha tia avança, para se me dirigir em modos tais, que logo reduz a intensidade do meu contentamento Aproveita esta bênção da nossa rainha, toleirão. Por aí, como agora, nada mais te resta de seguro a não ser um burrico, uma cítara e um alforge. E dona Isabel divertida. Não precisas meter a cítara no alforge… E trata de dormir cedo. Antes do romper da alva partiremos para Zaragoza. Vou-me dali à procura de meu tio, para lhe confiar a mudança da sorte, enquanto Soledad pede que chispe, com uma inclinação de cabeça. Talvez precise de tempo para repisar o assunto de Ángel, buscando forma de lhe levar notícias para trazer algum aditamento às que ele enviara cedo. Venho encontrar Juan à janela da cozinha que dá para o varandim dos claustros, a trovar como é seu jeito. Não são versos corteses, denunciam manhãs e vaidades de clérigos que servem senhores de fora, enquanto beijam as mãos aos do reino. Não poucos cuidam das almas com os bolsos cheios, sem vergonha de espiar em terra alheia… Esta é a sentença de Juan Cardeña y Fole, um goliardo de grande descaramento, que por acaso é meu tio.
Não sei em que ínfima fracção de tempo se gera a tormenta, levantada por prelados com excesso de zelo. Mal percebo o que se passa, está Juan a escapar-se para o átrio de serviço, a galgar as escadas da porta virada para o pátio, para desatar a correr rua abaixo, colado à parede das cavalariças. Grita-me que o posso encontrar no lugar de sempre, garantindo que ficará bem em companhia da Virgem da Alegria. E voltado para trás um instante, acena-me sorridente, para me dar confiança. Porém meu coração não pára, açoitado de forma inquieta por uma angústia latente.
Depois chega minha tia. Inteirada dos pormenores do triste episódio, segreda-me que estou protegido por agora, mas que não procure Juan tão depressa. E o episódio encerra com aquela conversa misteriosa entre dona Isabel e o mestre dos trovadores, Aimeric d´Ébrard, antigo prelado da Aquitânia, professor de dom Dinis quando ele era infante, agora bispo de Coimbra. Falam de um certo Bertrand Gott, arcebispo de Bordéus, ali pela gente de França. Era ele que meu tio acabava de acusar.
Quase toda a noite é um desassossego. Afinal o tal prelado é o mesmo que me inquiriu no claustro… Só quando adivinho que o dia vai amanhecer, gélido mas ensolarado, consigo desfrutar do conforto das mantas negras, antecipando o calor do capote surrado para fazer a viagem até Zaragoza, capital de Aragão. Pena é o sono acomodar-se à sensação de aconchego e tomar profundamente as últimas horas da madrugada. Já é tarde quando dou pelo chocalhar dos guizos dos animais de leite, nos currais ali perto, pelos cascos das bestas na laje da Carrer dos Condes.
Só há tempo de correr ao pátio, puxar o balde da cisterna, passar água gelada pelo rosto. Depois venho cuidar da taleiga com roupa lavada, fornecida por Soledad, antes de ir à cozinha do tamanho da maior casa que já vi, comer um resto de assado em cima de um naco de pão divino. De novo ninguém me estranha a presença, antes me estendem um vaso de barro com gemada. E como se eu fosse um servidor da casa, ainda perguntam se quero mais um pedaço de carne para o caminho. Boa vida me espera.
Chega a hora da nossa infanta descer com a família, corte de Aragão, clérigos confessores e ouvidores reais. Os enviados de Portugal conversam a um canto com Beltrán Vila Franca e Bernat Sarria, privado de Pedro III. Um deles é João Pires Velho, embaixador e conselheiro de dom Dinis. O outro é João Martins, trovador, casado com uma dona se não me engano já escolhida para dama de dona Isabel. O terceiro é o procurador Vasco Pires. Pelo que dizem, todos têm o costume de trovar, como dom Dinis, não é só João Martins.
Beltrán Vila Franca quer saber da geografia de Óbidos, das rendas das outras vilas doadas à noiva. Fala dos burgos que estão à cabeça da Casa da Rainha, constantes do contrato de casamento descrito no documento propter nuptias, que ele mesmo foi celebrar o ano passado com dom Dinis, em representação do rei de Aragão. Quando Bernard Sarria e Beltrán Vila Franca se afastam, o embaixador comenta com o procurador: é mesmo estrábica, a noiva…, como irá El Rei reagir? El Rei?… Pois se já tinha adivinhado pelo retrato. De que retrato falais?» In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
                                                                                               
Cortesia de SdeEmergência/JDACT