terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A Chave de Salomão. José Rodrigues dos Santos. « O desconhecido rezingou qualquer coisa imperceptivel e Jean-Claude, indiferente e compenetrado na sua tarefa, retomou a revista com o scanner de metais»

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«O velho de olhar glacial atravessou o átrio em passo firme e aproximou-se do dispositivo de controlo de acesso ao complexo do CERN. Não se recordava de ver todo aquele aparato de segurança quando ali escrevera da úl􀆟ma vez, mas umas bandeirinhas tricolores ao canto lembraram-lhe que o presidente francês deveria visitar as instalações na semana seguinte. Fucking Frenchies..., rosnou entre dentes. Rabujando de desagrado, ignorou o tapete rolante onde deveria depositar os objectos metálicos que trazia no bolso para a inspecção de segurança por raios X. Em vez disso dirigiu-se directamente aos torniquetes de passagem e só se deteve diante do detector de metais. Ficou então imóvel, quase uma estátua, apenas o movimento impaciente dos dedos e dos olhos azuis frios e perscrutadores a darem sinal de vida. Um segurança suíço fez-lhe um gesto para avançar. O visitante deu dois passos em frente e, atento ao nome Jean-Claude Bloch que o segurança trazia no crachá pregado ao peito, cruzou o detector. Soou nesse momento um sinal de alarme e acendeu-se uma luz vermelha sobre a máquina. O recém-chegado trazia metais. Com um scanner na mão, Jean-Claude aproximou-se do homem de olhos azuis. Levante os braços, por favor. O idoso obedeceu e o segurança colou-lhe o scanner às ancas. De imediato o engenho emitiu um zumbido. O visitante meteu as mãos ao bolso e, com um sorriso sem humor, como uma criança apanhada a roubar chocolates da despensa, extraiu os objectos metálicos que ali trazia. São apenas as chaves, umas moedas e o telemóvel, murmurou. Nada de especial, como vê. Jean-Claude olhou-o reprovadoramente e, com uma ponta de irritação a trepar-lhe no tom de voz, indicou o tapete rolante da máquina de raios X. Da próxima vez que cá vier ponha os metais ali, se não se importa. Isso facilitar-nos-ia a tarefa.
O desconhecido rezingou qualquer coisa imperceptivel e Jean-Claude, indiferente e compenetrado na sua tarefa, retomou a revista com o scanner de metais. Verificou as pernas, mandou o recém-chegado tirar os sapatos e inspeccionou-os também. Depois colou-lhe o engenho aos ombros e aos braços. Quando chegou ao peito o scanner voltou a emitir um zumbido. Damn!, praguejou o velho, contrariado. Esqueci-me da minha fucking amiguinha. Meteu a mão por baixo do casaco e retirou um objecto metálico colado à camisa. Os olhos do segurança arregalaram-se de susto ao reconhecer o objecto na mão do visitante. Uma pistola. Jean-Claude deu um salto para trás, o alarme estampado no rosto e na postura do corpo, e com um movimento rápido extraiu do coldre a sua própria arma. Freeze!, gritou, agarrando com as duas mãos uma Glock que apontou ao idoso. Não se mexa! Alertados pela reacção do colega, os restantes seguranças sacaram também as suas armas e viraram-nas para o visitante. A sirene de alerta começou entretanto a soar por todo o átrio, um uivo ondulado e urgente, e gerou-se a confusão. Algumas pessoas gritavam de pânico e outras corriam para sair dali. Parecia ter-se desencadeado subitamente um pandemónio; num instante estava tudo tranquilo, logo a seguir o caos generalizara-se.
Vamos lá, rapazes, não exagerem, protestou o idoso, ainda de pistola na mão e com várias armas apontadas para ele. É apenas o meu velho Colt, que diabo! Um cidadão honesto já não pode andar protegido neste mundo tão violento? Quieto!, insistiu Jean-Claude, a Glock de serviço apontada ao alvo. Baixe-se muito devagar e pouse a pistola no chão. Brandiu a sua arma, a sublinhar o aviso. Muito devagar, ouviu? Se fizer qualquer movimento repentino, terei de disparar. Está bem, está bem, assentou o visitante, aparentemente pouco impressionado com toda a perturbação que se gerara em volta dele. Conheço os procedimentos, não se preocupem. O velho baixou-se devagar e pousou o Colt no chão. Depois voltou a erguer-se, os braços no ar, até fitar de novo os homens que lhe apontavam as armas. Com um movimento rápido, o segurança diante dele pontapeou a pistola para longe. Depois, já mais tranquilo, fez com a arma um sinal a indicar o chão. Deite-se. Ponha as mãos atrás da nuca! O desconhecido revirou os olhos de enfado. Oiça, não acha que está a exagerar? O que se passou foi simplesmente um pequeno... Deite-se!
O visitante permaneceu um longo instante em pé, os olhos gelados e inquisiti-vos a medirem os seguranças que lhe apontavam as armas e a avaliarem friamente a situação, a mente a fazer cálculos sobre a melhor maneira de proceder. Por fim suspirou, a decisão tomada, e baixou devagar os braços. Todos esperavam que se deitasse no chão, como lhe fora ordenado, mas manteve-se de pé, um ancião de fato azul-escuro e gravata vermelha rodeado por seguranças que lhe apontavam armas. Não ouviu o que eu disse?, insistiu Jean-Claude, brandindo a sua pistola. Deite-se imediatamente! Sempre com gestos lentos e precisos, os olhos sem largarem os homens que o cercavam, o desconhecido meteu de novo a mão no interior do casaco. Quieto!, gritou o segurança, outra vez muito alarmado, receando que o visitante tirasse do casaco uma segunda arma. Quieto ou disparo! Nem mais um movimento! Mas o idoso voltou a ignorar a advertência. Inseriu os dedos no bolso interior do casaco e, sempre sem pressas, extraiu o objecto que procurava e virou-o na direcção do segurança que o ameaçava. Um cartão.
Apesar do nervosismo, Jean-Claude desviou fugazmente os olhos e espreitou o cartão, primeiro a medo, depois tão intrigado que o estudou com maior atenção. O pequeno rectângulo plastificado tinha uma fotografia a cores do lado esquerdo a exibir um rosto, que o segurança comparou com o do seu portador; as íris azuis frias e calculistas eram as mesmas, tal como as rugas que lhe rasgavam os cantos dos olhos, o rosto longo e seco, o queixo quadrado e os cabelos tão brancos que pareciam farrapos de neve. Não havia dúvida, tratava-se do visitante. Analisou o resto do cartão. À direita estava um círculo azul com a cabeça de uma águia no meio e em baixo um longo código de barras. Entre a fotografia e o círculo encontravam-se os dados a identificar o titular do cartão. No topo a informação Employee ID 1123-XO, no meio a indicação Status: Directorate of Science and Technology, Director, e em baixo o nome e a referência ao nível cinco de acesso de segurança». In José Rodrigues dos Santos, A Chave de Salomão, 2014, Gradiva, 2014, ISBN 978-989-616-602-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT