sábado, 25 de janeiro de 2020

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «São oito da noite e estou lúcido como há muito não me sentia. Um homem, quando chega a esta idade, 85 anos bem vividos, quase só sente agitação na memória»

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Lisboa, 22 de Junho de 1995
«Nunca esperei regressar a esta rua, e nunca esperei que o meu velho coração sentisse tanta emoção ao pisar os passeios da Lapa. Quando saí do táxi em frente ao hotel foi como se uma bola de demolição tivesse chocado comigo. Fiquei sem respiração por momentos, invadido por sentimentos, memórias de cheiros, imagens e vozes. Não me lembro sequer de ter pago o táxi, nem me recordo das palavras do porteiro, a dirigir-me com cortesia para a recepção. Nada, de repente, existia. A não ser Lisboa, 50 anos atrás. A minha Lisboa, onde amei tanto e tantas vezes. A minha Lisboa, das pensões e dos espiões, dos barcos ingleses e dos submarinos alemães; a Lisboa das ligas da Mary em cima de um lençol branco; a Lisboa dos cocktails no Aviz enquanto eu perseguia Alice; a Lisboa do penteado à refugiada da minha noiva, a Carminho; a Lisboa dessa menina linda, frágil e alemã, Anika, por quem eu arrisquei o pescoço; a Lisboa de Michael... Ó amigo, ó grande amigo de tão épicas horas, de tão tremendas lealdades e silêncios! Tinha tanta vontade de partilhar contigo um brandy, de te ver a descascar uma maçã com a tua fantástica faca Randall, americana (eu sei, meu malandro, não me esqueço, tu sempre gostaste delas americanas), às seis da manhã, na Rocha do Conde de Óbidos, dentro do meu Citroen azul-escuro. Os dois a ver partir um navio, a rirmos como os patifes que éramos, e tu a proferires a nossa senha de felicidade: e nós aqui enquanto Salazar dorme! Sim, e nós ali, a viver, a contar façanhas, a exibir troféus, ou a resmungar sobre a guerra, as manias do embaixador Campbell, os truques dos alemães, os subornos aos portugueses, as belas pernas das refugiadas que invadiam Lisboa. Uma guerra que, na capital, se tentava vencer com planos mirabolantes, espiões inventados e ideias loucas, como aquela de convencer os miúdos a escrever nas paredes, a giz, os VV da vitória dos Aliados, ou a baterem palmas no cinema sempre que apareciam as tropas inglesas. Truques e mais truques de propaganda, e denúncias, muitas denúncias, boatos que se punham a correr, puro terrorismo psicológico de guerra, muito eficaz nessa Lisboa que estava fora e dentro dela ao mesmo tempo. Local único da Europa, linda e cheia de luz, mas também de medo, a Lisboa onde vivi tanto que por mais que viva, e muito foi depois, nunca mais vivi como ali, aqui, nesta Lisboa.
E nós aqui, enquanto Salazar dorme..., dizia o meu amigo Michael. E era mentira e era verdade, porque ele não dormia, ele controlava o país, dizia-se que sabia tudo; controlava as pastas das Finanças, da Guerra, dos Negócios Estrangeiros; falava todos os dias com o capitão Agostinho Lourenço, o chefe da PVDE (chamava-se assim, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), e ele queria saber tudo e muitas vezes soube também de nós. Nós, os que vivíamos mais à noite, por vezes furtivos, por vezes só na boa vida dessa Lisboa onde o turbilhão de emoções da época fazia subir as saias das mulheres mais depressa. Não fosse o mundo acabar amanhã, o Hitler invadir a Península Ibérica, os americanos invadirem os Açores, os comunistas de Estaline darem cabo do Ocidente, tudo era possível! Estávamos em guerra, e ela era mundial, e mexia com os corações e com os desejos, e tu, Michael, cortavas a casca das maçãs muito fina, com a tua faca Randall sempre afiada, e a Carminho ia ao cabeleireiro para me entusiasmar, e a Alice ia conhecendo as suítes do Aviz, mulher dos diabos, imparável, e a Mary sofria, e bebia brandy, muito brandy, porque o marido nunca chegava, o coronel Bowles nunca chegava, e as coisas ainda iam correr mal, e ela agarrava-se a mim desesperada, e eu tirava-lhe as ligas, atirava-as para cima do lençol e amava-a o melhor que sabia. Era melhor que tu, Michael, desculpa lá mas tens de reconhecer que podias ser admirado como um actor de cinema, mas era eu quem tinha mais jeito com elas, era por mim que elas chamavam, mesmo as alemãs, essa é que te foi difícil de engolir, mas até uma alemã eu seduzi, enquanto Salazar dormia... Agora, sentado na cama deste quarto do Hotel da Lapa, 50 anos depois, dou por mim a pensar que Lisboa sempre esteve comigo, e que nunca parti completamente. Quando saí de cá, em finais de 45, pensava que nada me prendia a esta cidade. Nunca planeei voltar. Corri o mundo e trabalhei em mais de dez cidades, cortesia da minha companhia de navegação. Singapura, Montevideu, Cairo, Los Angeles, Tóquio, Rio de Janeiro, Hamburgo, Atenas, e até, horror dos horrores, Nairobi. Mas nunca vivi como aqui. E nunca quis voltar. Quando o Paul, meu neto, me disse que ia casar com uma portuguesa, sorri. E vou casar em Portugal, avô. Em Portugal... Não soube o que lhe dizer. E quero que tu vás, exigiu o meu neto. Resmunguei e protestei: 85 anos, dores nas costas, aviões, aeroportos, malas. Desculpas.
Na verdade, o meu coração sabia que, um dia, eu ia ter de voltar. Voltar à minha Lisboa, entre a Embaixada inglesa, aqui ao lado, na Rua de São Domingos à Lapa, e a Embaixada alemã, aqui ao lado também, na Rua do Pau da Bandeira. Voltar ao homem que fui, bom e mau, culpado e inocente, cavalheiro e bandido, amante e traidor, amigo e inimigo. Voltar àquela luz de Lisboa. Foram as histórias do avô que me fizeram apaixonar por uma portuguesa. Gosto deste meu neto, o Paul. Bom rapaz, trabalhador, MBA na London School of Economics, apaixonado por uma portuguesa. Mas não sabe quase nada. Contei-lhe muitas histórias da minha vida em Lisboa, mas só as que podia contar. As outras não podia. É difícil explicar o que eu fazia a um rapaz dos anos 90. Eles compreendem o heroísmo dos pilotos da RAF, a abnegação das enfermeiras, a coragem da Resistência francesa, até o espírito dos discursos de Churchill. Compreendem o horror de Auschwitz ou Dachau, a Cortina de Ferro, as bombas atómicas. Mas dificilmente compreendem a mistificação, o suborno, a guerra psicológica, a arte de enganar, as guerras surdas que se passavam em Lisboa. Não sabem o que são espiões. Por outro lado, julgam que o sexo começou agora. Falam dele com autoridade e consideram-se especialistas técnicos. Acham que têm muito prazer, e que antes ninguém o tinha. Não podem compreender um dos segredos da humanidade, um segredo estranho e perturbador: em tempo de guerra, o desespero toma conta das almas e as pessoas amam como loucas. Em Lisboa, amei como um doido. Conheci e dormi com mulheres que amavam como possessas e nunca mais amei assim porque nunca mais ninguém me amou assim. E isso o meu neto não pode compreender, pois a sociedade e a época marcam os homens, e a boa vida e a abundância dos anos 90, no mundo ocidental, não produzem esse tipo de desespero.
São oito da noite e estou lúcido como há muito não me sentia. Um homem, quando chega a esta idade, 85 anos bem vividos, quase só sente agitação na memória. Estou-me a apagar aos poucos, numa lenta mas imparável degradação. Às vezes desato a gritar com a criada, lá em casa, em Inglaterra. Têm de me aturar, mas sei de casos bem piores. Um tipo que conheço já não consegue fazer as necessidades sozinho. É uma humilhação. Eu ainda consigo vir a Lisboa sozinho num avião, meter-me num táxi, e fazer o check-in no Hotel da Lapa. Apesar de continuar a ter pensamentos de homem, a maior parte das minhas memórias não são sujas. Enquanto Salazar dormia, não havia só regabofe com as mulheres. Havia muito mais. Guerras, espionagem, diplomacia. Lembro-me de todos. Dos embaixadores e das secretárias. Dos polícias e das criadas de quarto. Dos milionários e dos judeus refugiados. Dos jornalistas e dos militares. Dos faroleiros e dos taxistas. E lembro-me do ciclone...» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT