jdact
As
Encostas de Albuquerque
«(…) Retirada da mãe, por
deliberação de Pedro Castro, que preferiu ver a filha criada pelo filho de um
rei, Inês, ainda criança de colo, encontrou no peito da senhora de Albuquerque
o desvelo de uma verdadeira mãe, não guardando memória ou mágoa da troca de
braços que a vida lhe impusera. A dedicação que a prima direita do seu pai
tinha por si enlaçara-as num amor inseparável, que prometia uni-las para sempre.
Alta e direita, de cabelos já embranquecidos pelo tempo e olhos escuros como a
noite, dona Teresa Martins Meneses era senhora daquela beleza distinta que só a
idade concede. Chamada a si a função de educadora, impunha o seu respeito, incutindo
à pupila rígidas normas e seculares princípios, e, contudo, nunca a ternura
desaparecia dos olhos com que a fitava, quer quando a repreendia, como quando a
mimava com o carinho.
Tal como a ditosa parente, também
aquela terra da Raia que a acolhera como filha se lhe aninhara no génio e no
coração. Conhecia cada pedra dos altos muros daquela alcáçova como as palmas
das mãos. E sentia-as como se nelas lesse ensinamentos e lhe ouvisse testemunhos
de vidas passadas. Era frequente vê-la a passar com os dedinhos na aspereza das
paredes acasteladas, atenta a um qualquer detalhe que antes lhe tivesse
escapado. Tinha àquele lugar um amor tamanho, que se diria estar-lhe
intimamente ligada, porventura, em muitas voltas do destino. Da perfeição,
porém, falava-lhe não só o abraço do seu alcácer, como também a beleza das suas
vistas, que lhe sorriam ao olhar.
Era maravilhada com quanto a
rodeava que a jovem galega, ora se passeava pelos seus pátios ajardinados,
abrigados à sombra de ciprestes, ora corria alegremente pela colina abaixo,
colhendo flores silvestres, até onde a cintura da muralha lho permitisse.
Albuquerque, que já traduzia um pouco de si também, entranhara-se-lhe na alma e
no corpo. Inês ajudara dona Teresa a escolher os veludos escarlates, ostentando
a ouro o brasão da família, que hoje enobreciam as janelas do salão nobre e lhe
aqueciam a frieza das pétreas paredes. Amava, não se cansava de dizê-lo, cada
nó da madeira da longa e nobre mesa, a negrura dos seus bancos corridos,
polidos de muitos anos, as armas do primo português expostas ao alto, a riqueza
dos candelabros que a alumiavam quando o breu a envolvia. A sua predilecção,
porém, os móveis que mais estimava naquele seu grandioso e magnífico claustro,
eram as arcas aferrolhadas em que conservava algumas das suas vestes e peças
bordadas do enxoval, a par de outros pertences. Os excelentes baús de madeiras
nobres tinham para si algo de misterioso e superior, fazendo-a sentir-se uma
princesa, que, na prática e não no título, era, de facto. Num desses ricos
cofres guardava com orgulho e ternura um pequeno retrato a óleo que dom Afonso Sanches encomendara a um
pintor local, sem fama ou importância, do outro lado da fronteira, mas provido de
um grande dom para a arte de reproduzir rostos. Nas tardes mais quietas e
entediantes, Inês levantava a pesada tampa da arca, procurava no interior esse
seu pequeno tesouro, e sentava-se na banqueta que lhe ficava próxima, a admirar
a sua imagem traçada a tinta.
A pequena Castro era feliz.
Repetia-o sem hesitações. Só lhe carecia, por vezes, alguém da sua idade e da
sua classe com quem brincar, que não fosse filho de uma serviçal. Tinha um
irmão, Alvaro, filho da mesma mãe, um pouco mais novo, mas a quem raramente revia,
vivendo como ele vivia na Galiza, sob a alçada do sério pai. E assim, nas
proximidades e com avoengos antepassados, restavam-lhe alguns fidalgos menores,
que tinham os seus palácios na cidade, mas com cujas filhas pelo inferior
estatuto, ou por mera protecção, dona Teresa não a deixava privar». In
Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN
978-989-884-372-2.
Cortesia de Topseller/20/20
Editora/JDACT