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1754-1758
«(…) De mais longe chega já o brado que sai
de entre os escombros, por onde uma imensa onda galgará mais tarde, maremoto a
arrebanhar os restos do pouco que ainda restar. Sempre que a terra parece
imobilizar-se, as duas correm esperançadas, sem cuidar de evitar as rachas
abertas no solo de onde brota uma lama fervente, imunda e fétida. Logo, porém,
os abalos regressam, a derrubar, a acabar com o que ficara suspenso, e no seu
descuido elas tombam, erguem-se, magoam-se. Reparando nos soluços emudecidos de
Maria, Leonor toma-a pelos ombros frágeis a empurrá-la, a puxá-la em direcção a
casa que julga antever à sua frente percorrida por um intenso arrepio, que a
leva a tremer de alto-a-baixo parecendo contorcer-se e arquear-se, mas então é
o mirante do lado norte da quinta que de súbito desaba numa espécie de suspiro reprimido,
enquanto nas grossas paredes das várias fachadas do edifício serpenteiam
veios que logo se tornam frinchas enegrecidas, num grande fragor de alvenaria a
fender-se, a esboroar-se.
Na tentativa de escapar aos blocos de
pedra, às traves que estalam e caem, às telhas que na queda se desfazem a seus
pés, elas desviam-se e recuam aturdidas, afastam-se o melhor que podem tolhidas
por um terror visceral, a fingirem ignorar a vertigem e a náusea que as
acomete, cambaleando entre o pátio e os jardins que se encheram com a família,
os criados, com os vizinhos, todos aqueles que ali procuram refúgio vindos de
maiores perigos, do inferno em que as ruas da cidade se tornaram. De mãos
dadas, encolhidas uma na outra, Maria e Leonor não conseguem evitar os picos
dos cardos, os cacos dos vidros, lutam para conseguir respirar o ar pesado e
grosso; param um pouco a tentarem engolir a saliva encorpada e áspera com travo
a salitre e amargor. Sabor do ar entretecido pelas nuvens de fumo, de cinza e
poeira a fazê-las chorar à medida que avançam, pernas e braços lacerados. Passo
incerto na teima de se firmar naquela espécie de ondulação obscura, vestidos
esfarrapados pelos espinhos de roseiras improváveis. A magoarem-se nas árvores
arrancadas pelas raízes que ficam como farpas viradas para o alto, a ferirem-se
nas ferrarias espalhadas a esmo, a arranharem-se nas silvas que parecem brotar
de súbito por entre as fendas que o solo abre, escaldando debaixo dos pés. Caracóis
desfeitos e colados às faces humedecidas pelo suor, pelo ranho e pelas lágrimas
que correm sem que dêem por isso, as meninas tentam agarrar-se onde podem, em
risco de serem derrubadas por quem corre enlouquecido a tropeçar, a vacilar, a
oscilar antes de cair de joelhos, mãos postas numa súplica muda ao Altíssimo. Vamos
morrer, soluça Maria num fio de queixa inaudível que leva Leonor, num
derradeiro esforço, a tentar distinguir por entre o caos que as rodeia um meio
de as pôr no trilho de casa. E é mais por instinto do que por discernimento que
se defende e à irmã dos cavalos fugidos, a correrem às cegas relinchando,
espezinhando tudo à sua passagem, por entre o negrume que se abatera sobre a
manhã ainda há pouco transparente e radiosa.
Escuridade feita de rolos de pó a
desprenderem-se da caliça, do estuque, do entulho e também dos fumos dos
incêndios ateados pelas velas acesas que, sacudidas dos candelabros e
palmatórias, tombam das mesas dos quartos interiores e das bibliotecas, dos
oratórios e dos altares, a rolarem pelos soalhos de madeira velha e vulnerável
de igrejas, capelas e conventos. Pelos
tapetes persas e de Arraiolos dos palácios, flamejando com gosto os cortinados
de veludo por onde trepam, lambendo as franjas douradas, os panos de arrás, no
devorar dos quadros e das tapeçarias. Chamas num rastejar silvante, um pouco
por todo o lado, com preferência pelos cetins, as sedas puras e as rendas de
bilros, os livros e os damascos de revestir as paredes, demorando-se em seguida
nas imagens antigas dos santos de devoção, e por fim nos móveis:
multiplicando-se nos toucadores, nas escrivaninhas, nas camas, nas cómodas de
ébano, nos contadores com embutidos, encarniçando-se com afinco no estilhaçar
dos espelhos, das louças e dos vidros.
Aterrada, Leonor empurra a irmã para trás no instante preciso em
que a terra se imobiliza mais uma vez, curtos segundos em que as duas se sentem
colhidas pela cintura, braços fortes a erguê-las à altura do peito do pai, a
apertá-las num abraço de susto, quase sem darem conta da voz trémula da mãe,
numa mescla de reza entoada, ladainha e palavras de premonição, num imbricado
de português e latim: litania que o ruído sombrio das asas e dos gritos
estridentes das gaivotas aflitas quase apaga». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT