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Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) O Margaride encomendou o
chá, e vendo-me olhar com inquietação os ponteiros do relógio, afirmou-me que
eu chegaria à casa ainda a horas de fazer a minha tocante devoção com a Titi. A
Titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde... A Titi
agora, louvado seja Deus, tem mais confiança em mim. E você merece-o... Faz-lhe
a vontade, é sisudo... Ela pouco a pouco tem-lhe ganho amizade, segundo me diz
o Casimiro... Então lembrei-me da velha afeição que ligava o Doutor Margaride
ao padre Casimiro, procurador da tia Patrocínio e seu zeloso confessor. E, arrebatando
a oportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao magistrado,
largamente, como a um pai. É verdade, a Titi tem-me amizade... Mas acredite
Vossa Excelência, Doutor Margaride, que o meu futuro inquieta-me às vezes... Olhe
que tenho pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se
seria difícil entrar como despachante na alfândega. Porque enfim a Titi é rica,
é muito rica; eu sou seu sobrinho, único parente, único herdeiro; mas... E
olhei ansiosamente para o Doutor Margaride, que, pelo loquaz padre Casimiro,
conhecia talvez o testamento da Titi... O silêncio grave em que ele ficou, com
as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro; e nesse instante o criado
trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e felicitando o magistrado por o ver melhor
do seu catarro. Deliciosa torrada!, murmurou o doutor. Excelente torrada!,
suspirei eu cortesmente.
De vez em quando o Doutor
Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a face, os dedos; e recomeçava
a mastigar devagar, com delicadeza e com religião. Eu arrisquei outra palavra
tímida. A Titi, é verdade, tem-me amizade... A Titi tem-lhe amizade, atalhou
com a boca cheia o magistrado, e você é o seu único parente... Mas a questão é
outra, Teodorico. É que você tem um rival. Rebento-o!, gritei eu,
irresistivelmente, com os olhos em chamas, esmurrando o mármore da mesa. O moço
triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o Doutor Margaride
reprovou com severidade a minha violência. Essa expressão é imprópria de um
cavalheiro, e de um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguém... E além
disso o seu rival não é outro, Teodorico, senão Nosso Senhor Jesus Cristo! Nosso
Senhor Jesus Cristo? E só compreendi, quando o esclarecido jurisconsulto, já
mais calmo, me revelou que a Titi, ainda no último ano da minha formatura,
tencionava deixar a sua fortuna, terras e prédios, a irmandades da sua simpatia
e a padres da sua devoção. Estou perdido!, murmurei.
Os meus olhos, casualmente,
encontraram, lá ao fundo, o moço triste diante do seu capilé. E pareceu-me que
ele se assemelhava a mim como um irmão, que era eu próprio, Teodorico, já
deserdado, sórdido, com as botas cambadas, vindo ali ruminar as dores da minha
vida, à noite, diante de um capilé. Mas o Doutor Margaride acabara a torrada. E
estendendo regaladamente as pernas, consolou-me, de palito na boca, afável e perspicaz.
Nem tudo está perdido, Teodorico. Não me parece que esteja tudo perdido... É
possível que a senhora sua tia tenha mudado de ideia... Você é bem comportado,
amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ela... Tudo isto influi. Que é
necessário dizê-lo, o rival é forte! Eu gemi: e de arromba!
E
forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Cristo padeceu por
nós, é religião do Estado, não há senão curvar a cabeça... Olhe, quer você a
minha opinião? Pois aí a tem, franca e sem rebuço, para lhe servir de guia...
Você vem a herdar tudo, se dona Patrocínio, sua tia e minha senhora, se
convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como deixá-la à Santa Madre
Igreja... O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, ia abafado no seu
casaco, ainda me disse baixinho: com franqueza, que tal a torrada? Não há
melhor torrada em Lisboa, Doutor Margaride. Ele apertou-me a mão com afecto, e
separamo-nos, quando estava dando a meia-noite no velho relógio do Carmo». In
Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira,
Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN
978-989-711-008-5.
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