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«(…) Mas não, nunca acabariam. De
certo modo fazia os possíveis por ser maltratado, porque se imiscuía num meio a
que não pertencia: a alta sociedade inglesa. E divertia-se com os pontapés que
lhe dava. E ele odiava-a. Mesmo assim viajava com o criado e num bom carro,
esse vadio de Dublim. Havia qualquer coisa nele que Connie apreciava. Não se
fazia importante, não tinha ilusões sobre si próprio. Conversava com Clifford
de maneira delicada, breve, prática sobre tudo que este queria saber. Não se
expandia nem se deixava entusiasmar. Sabia que tinha sido convidado para Wragby
para ser usado, e, como um velho homem de negócios, esperto e indiferente, como
um importante homem de negócios, permitia que o interrogassem e respondia sem que
os seus sentimentos interferissem. Dinheiro! O dinheiro é uma espécie de
instinto, uma das características da natureza humana é fazer dinheiro. Não tem
nada a ver com o que uma pessoa faça, nem é um jogo. É uma espécie de acidente
permanente da nossa própria natureza. Quando se começa, faz-se dinheiro e não
se pára mais, até um determinado ponto, é claro.
Mas é preciso começar, respondeu
Clifford. Oh, absolutamente, é preciso entrar na roda, quando se está de fora
não se consegue nada. Tem de se lutar para entrar, e uma vez que o tenha
conseguido, é inevitável. Mas poderia ter ganho dinheiro sem as peças? Oh,
provavelmente não! Posso ser bom ou mau, mas sou escritor, um escritor teatral,
e não podia ser outra coisa. Disso não tenho a menor dúvida. E acha que tem de
ser um autor de peças para o grande público?, perguntou Connie. É esse exactamente
o ponto!, respondeu Michaelis, voltando-se para ela, num impulso súbito. Tudo
isso não significa nada. A popularidade não significa nada, nem o grande
público, se quiser. Realmente não há nada nas minhas peças que as torne
populares, não é isso. São apenas como o tempo... São como têm de ser, pelo
menos por agora. Olhou para Connie e os seus olhos um pouco rasgados e a
expressão lenta eram de quem se tivesse afogado numa desilusão abismal. Ela
sentiu um estremecimento. Parecia muito velho, infinitamente velho, formado por
camadas de desilusão, afundando-se dentro dele geração após geração, como os
estratos geológicos. E, ao mesmo tempo, estava perdido como uma criança. Um
proscrito, de certo modo, mas com a coragem desesperada de uma existência de
ratazana. Pelo menos é extraordinário o que você já fez, com a sua idade, disse
Clifford, pensativo. Tenho trinta anos, sim, trinta!, respondeu Michaelis, de
maneira ríspida e brusca, com um riso estranho, ao mesmo tempo profundo,
triunfantemente amargo. E está só?, perguntou Connie. Que é que quer dizer? Se
vivo só? Tenho o meu criado, é grego, ele assim o afirma, e é bastante
incompetente. Mas conservo-o. E vou casar. Ah, sim, tenho de casar.
Parece que está a falar de uma
operação às amígdalas, disse Connie, a rir-se. Tem de fazer esforço? Ele olhou
para ela com admiração. Bem, lady Chatterley,
de certo modo tenho. Acho... ,desculpe..., acho que não me poderia casar com
uma inglesa, nem mesmo com uma irlandesa. Experimente com uma americana!, disse
Clifford. Oh, as americanas!, respondeu, com um grande sorriso. Não, pedi ao
meu criado que me encontrasse uma turca, ou coisa assim..., mais oriental. Connie
estava realmente impressionada com este curioso e melancólico espécime, com um
êxito extraordinário. Dizia-se que, só da América, tinha um rendimento de cinquenta
mil dólares. Por vezes era atraente, outras, quando olhava de lado ou para
baixo, e a luz incidia nele, tinha uma beleza silenciosa e persistente, como
uma máscara de um negro esculpida em marfim, com os seus olhos muito rasgados,
as sobrancelhas pronunciadas, curiosamente arqueadas, a boca imóvel e contraída.
Aquela imobilidade momentânea, mas expressa, aquela imobilidade e intemporalidade
a que o Buda aspira e que os negros possuem por vezes, sem querer. Qualquer
coisa de velho, de velho e aquiescente, própria da raça. Séculos de
aquiescência como destino de raça, em vez da nossa resistência individual. E depois
uma travessia a nado como fazem os ratos num rio escuro. Connie sentiu uma
súbita e estranha simpatia por ele, feita de compaixão, e com uma tonalidade de
repulsa, quase amor. O intruso! O intruso! E chamavam-lhe pretensioso! Clifford
parecia muito mais pretensioso e convencido! E muito mais estúpido. Michaelis
percebeu imediatamente que a tinha impressionado. Olhava-a com os seus olhos
rasgados, cor de avelã, ligeiramente salientes, com uma expressão de pura
indiferença. Estava a avaliá-la e a avaliar a impressão que despertara. Com ingleses
ele nunca podia deixar de ser o eterno intruso, mesmo tratando-se de amor. No
entanto, algumas vezes, as mulheres cediam, e as inglesas também». In D. H. Lawrence, O Amante de lady
Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN
978-972-708-848-1.
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