O Degelo
«(…) Tais coisas, mal diferenciadas
então, e percebidas pela maioria somente como uma repentina onda de fadiga
mortal, acompanharam a nossa alegria pela libertação. Por isso, poucos dentre
nós correram ao encontro dos salvadores, poucos caíram em oração. Charles e eu
permanecíamos de pé, junto à fossa, com os membros lívidos, enquanto outros
punham abaixo o arame farpado; depois tornamos a entrar com a padiola vazia,
levando a notícia aos companheiros. durante todo o resto do dia nada ocorreu,
coisa que não nos surpreendera, uma vez que estávamos fazia tempo acostumados
com isso. No quarto, o beliche do falecido Somógyi foi de pronto ocupado pelo
velho Thylle, com visível nojo dos meus dois companheiros franceses. Thylle,
pelo que eu sabia então, era um triângulo vermelho, um prisioneiro político
alemão, e era um dos velhos do Lager; como tal, pertencera de direito à
aristocracia do campo: não fizera trabalhos braçais (pelo menos nos últimos
anos) e recebera alimentos e roupas da sua casa. Por essas mesmas razões, os políticos
alemães eram raramente hóspedes da enfermaria, onde desfrutavam de diversos
privilégios: primeiramente, o de fugir das seleções. Pois, no momento da
libertação, ele era o único, fora nomeado pelos SS que fugiam para o cargo de chefe
do barracão do Bloco 20, de que faziam parte, além do nosso círculo de doentes
altamente infectados, a Secção TBC e a Secção Disenteria. Sendo alemão, levara
muito a sério essa precária nomeação. Durante os dez dias que separaram a saída
dos SS da chegada dos russos, enquanto todos combatiam a última batalha contra
a fome, o gelo e a doença, Thylle fizera diligentes inspecções no seu novíssimo
feudo, verificando o estado do chão e das tigelas e o número das cobertas (uma
para cada hóspede, vivo ou morto). Numa das suas visitas ao nosso quarto,
elogiara Arthur, em virtude da ordem e da limpeza que soubera manter. Arthur,
que não compreendia o alemão, e muito menos o dialecto saxão de Thylle,
respondera-lhe vieux dégoûtant e putain de boche; apesar disso Thylle, daquele
dia em diante, com evidente abuso de autoridade, adquirira o hábito de vir
todas as noites ao nosso quarto para se servir da confortável privada: era a única,
em todo o campo, com a qual tomávamos regularmente todos os cuidados, e a única
situada nas proximidades de um aquecedor.
Até aquele dia, o velho Thylle
fora um estranho para mim e, portanto, um inimigo; além disso, alguém do poder,
e, portanto, um inimigo perigoso. Para as pessoas como eu, vale dizer, para a
generalidade do Lager, outras nuances não havia: durante todo o longuíssimo ano
transcorrido no Lager, eu jamais tivera a curiosidade ou a oportunidade de
indagar a respeito das complexas estruturas da hierarquia do campo. O tenebroso
edifício de potências terríveis continuava totalmente acima de nós, e o nosso
olhar se dirigia para o solo. Entretanto, foi esse mesmo Thylle, velho militar
endurecido por cem lutas pelo seu partido, e dentro do seu partido, e
petrificado pelos dez anos de vida feroz e ambígua no Lager, o companheiro e o
confidente de minha primeira noite de liberdade.
Durante todo o dia, tivemos muito que
fazer para encontrar tempo de comentar o acontecimento, que sentíamos realmente
marcar o ponto crucial de toda a nossa existência; e talvez, inconscientemente,
inventávamos o que fazer, justamente com o objectivo de não ter tempo, pois
diante da liberdade nos sentíamos confusos, esvaziados, atrofiados,
inadaptados. Mas veio a noite: os companheiros adoentados adormeceram,
adormeceram também Charles e Arthur com o sono da inocência, pois estavam no
Lager havia um mês, e ainda não tinham sorvido o veneno: eu, sozinho, embora
exausto, não encontrava o sono, por causa do esgotamento da doença. Doíam-me
todos os membros, o sangue pulsava convulsivamente no crânio, e eu me sentia
invadir pela febre. Mas não era apenas isso: como se um dique houvesse
desmoronado, logo quando as ameaças pareciam desaparecer, quando a esperança de
voltar à vida deixava de ser considerada absurda, eu me encontrava subjugado
por uma dor nova e mais vasta, antes sepultada e relegada às fronteiras da
consciência, por outras dores mais urgentes: a dor do exílio, da casa distante,
da solidão, dos amigos perdidos, da juventude perdida, e da multidão de cadáveres
nas proximidades». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de
Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.
Cortesia de ETeorema/JDACT