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Ondas
«(…) Ondas
de um azul profundo, à excepção da luz semeada de diamantes que se formava no
seu dorso semelhante ao
dos grandes cavalos que galopam. As ondas tombavam, retiravam-se e voltavam a cair […] (do romance As
Ondas de Virginia
Woolf)
Enquanto ressoavam aos nossos pés, num estrondo imenso a
desfazerem-se em reverberações múltiplas, fazendo-me sentir ora uma menina
débil no meio da correnteza dos ventos que se entrecruzavam, vestido colado ao
corpo frágil que tiritava encharcado pela espuma branca e gelada das ondas, ora
quase etérea, a sentir-me suspensa no ar,
como um anjo e à minha frente,
misteriosa e incerta por entre neblinas e brumas, mas jamais tão perto, a ilha do Pico como se fosse da
condição de destinos e sagas, de onde eu tivesse que voar para ela, ligadas
pelos atilhos da vida, que para mim então mal começara, mas também pelas lianas
do abismo, em histórias diversas e sem nenhuma partilha ou futuro possível,
enquanto a nossa estranha viagem continuava, lenta mas
inexorável, rumo às vagas cada vez maiores, confundindo-me, fazendo-nos
acreditar estarmos a afastar-nos do tempo real, numa sensação de longitude, que
me agudizava os sentidos, tremendo de frio da algidez do mar, a caminho das
marés de sargaços. Mar de baga ali bem perto, tinham-lhe chamado os navegadores portugueses, e eu a desejar
assemelhar-me a corsária naquele banco-galeão tentando fugir, escapar à minha
pequena vida de menina de cinco anos solitários e inventivos, iludindo os
gritos da avó, apagando a imagem daqueles que tentavam vencer as forças que a
natureza comanda, ambicionando
eu, quem sabe, um outro final… Passinho vacilante a aproximar-se da borda da
placa de cimento onde mal me equilibrava, na direcção das sereias…
Mas de súbito
senti-me pegada pelo pulso de fuso, arrebatada pela cintura, por entre o
tumulto e a exaltação de quem se consome, levado pelo próprio entusiasmo. E quando
ao lado da minha avó ainda trémula, fiquei de pé em chão seguro, ouvi dizer, Estão salvas! Hoje continuo a
perguntar-me, tal como então, perplexa: salvas de quê? De quem? De nós mesmas?
Nós, de nós mesmas?
Abismo
É tamanho o sol vindo da janela entreaberta, que Beatriz
semicerra os olhos vulneráveis de serem tão azuis, prisioneira da cintilação
dos estilhaços de luz que a extrema claridade projecta como estrelas na capota
levantada do carrinho de bebé, onde a irmã de poucos meses dorme, rosto
inclinado como quem procura a sombra projectada num dos lados da pequena
almofada branca. Sentada no chão em cima das pernas cruzadas, joelhos
arranhados pelas silvas e urtigas, pelos espinhos das rosas portuguesas do
quintal, escuta estonteada o manso zunido do calor, cortado de súbito pelo som
dos sapatos de salto alto da mãe, que silenciosa se levantara do sofá no outro
lado da sala, e devagar se dirige para elas, vestido de shantung cor-de-rosa pálido
ondulando em torno das coxas estreitas, seguindo o movimento cadenciado das
pernas muito altas. Beatriz repara no seu rosto exangue de sonâmbula, que os
cabelos toldados pelo próprio ouro emolduram, a tocarem-lhe os ombros onde se
anelam. Mas são os olhos absolutamente vazios de boneca de porcelana que a
sobressaltam; e talvez por isso recua com um mau pressentimento, pontada mínima
de agulha no peito coberto pelo vestidinho leve, bordado a ponto de favo em
torno da cintura, as costas de encontro à parede muito branca, a vê-la
abeirar-se do carrinho, debruçar-se, levantar com cuidado a cabeça da filha
adormecida, retirar a almofada e em seguida colocá-la sobre a sua cara, e começar
a carregar com vagares de demora. Sem dar conta do que faz, Beatriz ergue-se de
um salto, respiração suspensa, e dá dois passos em direcção à mãe, que
sentindo-a atrás de si, lentamente retira a almofada da cara da menina, volta-se
e fita-a com raiva, lábios desenhados a carmim entreabertos, respiração
suspensa; e quando ela se inclina sobre si, sente-lhe o hálito de murta e de
roseira, a misturar-se com o perfume de almíscar que agora usa». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
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