sábado, 11 de janeiro de 2020

Meninas. Maria Teresa Horta. «Mas são os olhos absolutamente vazios de boneca de porcelana que a sobressaltam; e talvez por isso recua com um mau pressentimento, pontada mínima de agulha no peito…»

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Ondas
«(…) Ondas de um azul profundo, à excepção da luz semeada de diamantes que se formava no seu dorso semelhante ao dos grandes cavalos que galopam. As ondas tombavam, retiravam-se e voltavam a cair […] (do romance As Ondas de Virginia Woolf)

Enquanto ressoavam aos nossos pés, num estrondo imenso a desfazerem-se em reverberações múltiplas, fazendo-me sentir ora uma menina débil no meio da correnteza dos ventos que se entrecruzavam, vestido colado ao corpo frágil que tiritava encharcado pela espuma branca e gelada das ondas, ora quase etérea, a sentir-me suspensa no ar, como um anjo e à minha frente, misteriosa e incerta por entre neblinas e brumas, mas jamais tão perto, a ilha do Pico como se fosse da condição de destinos e sagas, de onde eu tivesse que voar para ela, ligadas pelos atilhos da vida, que para mim então mal começara, mas também pelas lianas do abismo, em histórias diversas e sem nenhuma partilha ou futuro possível, enquanto a nossa estranha viagem continuava, lenta mas inexorável, rumo às vagas cada vez maiores, confundindo-me, fazendo-nos acreditar estarmos a afastar-nos do tempo real, numa sensação de longitude, que me agudizava os sentidos, tremendo de frio da algidez do mar, a caminho das marés de sargaços. Mar de baga ali bem perto, tinham-lhe chamado os navegadores portugueses, e eu a desejar assemelhar-me a corsária naquele banco-galeão tentando fugir, escapar à minha pequena vida de menina de cinco anos solitários e inventivos, iludindo os gritos da avó, apagando a imagem daqueles que tentavam vencer as forças que a natureza comanda, ambicionando eu, quem sabe, um outro final… Passinho vacilante a aproximar-se da borda da placa de cimento onde mal me equilibrava, na direcção das sereias…
Mas de súbito senti-me pegada pelo pulso de fuso, arrebatada pela cintura, por entre o tumulto e a exaltação de quem se consome, levado pelo próprio entusiasmo. E quando ao lado da minha avó ainda trémula, fiquei de pé em chão seguro, ouvi dizer, Estão salvas! Hoje continuo a perguntar-me, tal como então, perplexa: salvas de quê? De quem? De nós mesmas? Nós, de nós mesmas?

Abismo
É tamanho o sol vindo da janela entreaberta, que Beatriz semicerra os olhos vulneráveis de serem tão azuis, prisioneira da cintilação dos estilhaços de luz que a extrema claridade projecta como estrelas na capota levantada do carrinho de bebé, onde a irmã de poucos meses dorme, rosto inclinado como quem procura a sombra projectada num dos lados da pequena almofada branca. Sentada no chão em cima das pernas cruzadas, joelhos arranhados pelas silvas e urtigas, pelos espinhos das rosas portuguesas do quintal, escuta estonteada o manso zunido do calor, cortado de súbito pelo som dos sapatos de salto alto da mãe, que silenciosa se levantara do sofá no outro lado da sala, e devagar se dirige para elas, vestido de shantung cor-de-rosa pálido ondulando em torno das coxas estreitas, seguindo o movimento cadenciado das pernas muito altas. Beatriz repara no seu rosto exangue de sonâmbula, que os cabelos toldados pelo próprio ouro emolduram, a tocarem-lhe os ombros onde se anelam. Mas são os olhos absolutamente vazios de boneca de porcelana que a sobressaltam; e talvez por isso recua com um mau pressentimento, pontada mínima de agulha no peito coberto pelo vestidinho leve, bordado a ponto de favo em torno da cintura, as costas de encontro à parede muito branca, a vê-la abeirar-se do carrinho, debruçar-se, levantar com cuidado a cabeça da filha adormecida, retirar a almofada e em seguida colocá-la sobre a sua cara, e começar a carregar com vagares de demora. Sem dar conta do que faz, Beatriz ergue-se de um salto, respiração suspensa, e dá dois passos em direcção à mãe, que sentindo-a atrás de si, lentamente retira a almofada da cara da menina, volta-se e fita-a com raiva, lábios desenhados a carmim entreabertos, respiração suspensa; e quando ela se inclina sobre si, sente-lhe o hálito de murta e de roseira, a misturar-se com o perfume de almíscar que agora usa». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT