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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Não é
razão suficiente para tanta paranóia; mas desde que o policial do aeroporto lhe
dissera que havia um problema com o seu passaporte, ao qual se pode somar o facto
de a mala ter sido aberta em algum lugar entre o Aeroporto da Portela, em
Lisboa, e Heathrow, caso para resolver no dia seguinte, embora possamos afirmar
que tempo não será algo que Sarah Monteiro vá ter de sobra nos próximos dias,
mais a carta, fez com que o alarme fantasioso de uma conjuração disparasse na
sua mente. A carta é que a inquieta, mais do que todo o resto... A carta... Seja
como for, os segundos contam, a chamada ainda está no ar, e nem um olá ou outra
coisa qualquer. Também não se ouve a respiração do interlocutor oposto; apenas
o ruído de uma sirene da polícia. O típico lamento sonoro de emergência ou de Saiam
da frente muito habitual em todos os países de primeiro e segundo mundo.
Dos de terceiro não reza a história, ou é preferível que assim seja; longe dos
olhos, longe do coração. O som irrompe do fone do aparelho e não da rua; pelo
menos assim parece à primeira vista, ou escuta, e confirma-se com uma segunda
mais atenta. Um carro da polícia passa próximo ao local de procedência da chamada.
Um dado importante a quem isso importe. A chamada é interrompida abruptamente:
nem um adeus ou um Até logo. Somente um dique súbito a apartar dois locais
diferentes, ou nem isso. O lamento sonoro do carro da polícia continua a se
fazer ouvir, agora no mundo real, lá fora, na Belgrave Road. Os pirilampos
azuis periódicos invadem as cortinas vermelhas fechadas e enchem o piso
inferior da casa de Sarah com tons psicadélicos arroxeados.
Curiosa
coincidência a dos carros de polícia passando ao mesmo tempo nos dois locais, a
origem e o destino da chamada. É de facto curioso... Ou será...? Muita
coincidência? Apaga todas as luzes do piso, mergulhando o apartamento na
penumbra profusa dos espíritos inquietos. Arrasta criteriosamente o sofá creme
de três lugares que está na sala, para o afastar da janela, e então se
posiciona junto a ela. Respira fundo antes de abrir uma fresta da cortina, nada
muito acentuado, apenas uma pequena brecha que dê para ver sem ser vista. Na
rua, o ambiente normal de Belgrave Road durante a noite. Dezenas de pessoas
passando para cima e para baixo. Mapas nas mãos, malas, sacos; cada um na sua e
indiferente a Sarah Monteiro. O tráfego circulava de modo incessante, apesar de
não ser das ruas mais concorridas de Londres. Automóveis de todos os tipos,
táxis londrinos, o 24 estacionado no ponto do outro lado da rua, na direcção de
Pimlico/Grosvenor Road, largando alguns passageiros e deixando entrar outros.
Nenhum ser
nem movimento suspeito. Também não o saberia distinguir no meio de tanta
agitação humana, a não ser que fosse bastante óbvio. Se alguém a estivesse
vigiando, não estaria com certeza vestido de negro da cabeça aos pés, como ela
imaginava, com um sobretudo a cobrir-lhe as formas e fazendo de conta que lia
um jornal encostado num poste de luz. Segundo os filmes de espionagem, qualquer
pessoa poderia ser um espião. Até o gari, que nesse momento recolhe os sacos de
lixo da rua. Ou a mulher que fala ao telefone móvel no quarto do segundo andar
do hotel Hollyday Express, em frente à sua casa. Ou podiam não passar de
cidadãos comuns entregues ao quotidiano, um recolhendo os sacos de lixo da rua
e a outra fazendo uma chamada para algum familiar distante.
Está
delirando, diz para si mesma, aplacando instantaneamente a tensão a que estivera
submetida nos últimos minutos. Que estupidez. Iam mesmo vigiá-la... Você é tão
importante! No entanto, algo lhe desperta a atenção quando o 24 parte levando
os passageiros aos seus afazeres. Um carro negro de vidros escuros. É sempre
suspeito. Assim são em todos os filmes: veículos com vidros que não permitem
ver os agentes ocultos no interior, cheios de aparelhos de última geração que
esquadrinham todos os movimentos, pensamentos e vontades. Pode ser alguém que
veio buscar um hóspede no hotel. Será que está ali há muito tempo? Agora o
lento gari já não lhe parece tão inocente, assim como a mulher no segundo andar
do hotel, que nunca mais tira os olhos da rua nem desliga a porcaria do
telefone. Serão agentes secretos todos eles? O carro... O carro negro de vidros
escuros..., não lhe parece nada inocente, muito pelo contrário. E há qualquer
coisa nele que a aflige. O que será?
Já vi esse
carro, fala para si mesma em voz alta. Já vi esse carro, repete. Sem dúvida que
sim, Sarah Monteiro, que agora vê desfiar diante de si os arquivos cerebrais
que guardam a imagem daquele veículo escuro altamente suspeito. Se fosse um
homem, nem a marca ou o modelo o ajudariam a identificar o local e a hora onde
o vira pela primeira vez. Mas a memória feminina de Sarah Monteiro, fotográfica
e assincrónica organizada, logo lhe mostraria quando e onde vira aquele carro
estacionado do outro lado da rua: algumas horas antes, dentro do táxi londrino
que a trazia do aeroporto de Heathrow. O carro que havia parado bruscamente à
frente deles, e assim permanecera durante alguns instantes, sem dar sinais de
vida. Depois o condutor que abriu o vidro, lançou o Sorry, mate e seguiu em
frente. Era aquele carro. Sem dúvida. O que significa que pode estar
estacionado do outro lado da rua há mais de três horas. O que significa que
também pode não significar nada, e tudo não passar de um filme de espionagem
que a carta desencadeara dentro da sua cabeça. E essa segunda hipótese, no seu
entender, era a mais acertada». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
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