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À
procura do Bem e do Mal
«(…) Se o infante D. Henrique fazia
parte do seu destino, fugir-lhe não podia. Logo que a informação saiu do rei para
o camareiro que haveria de avisar o infante Henrique da sua chegada a Lisboa,
nada mais havia a fazer a não ser reforçar a ideia da importância do encontro e
esperar que o irmão tivesse uma solução para o seu requerimento. Virás com a resposta
do infante seja a que horas for, e se não o encontrardes na corte, deveis requisitá-lo,
esteja ele onde estiver, porque a urgência do que lhe quero dizer sobreleva qualquer
assunto que ele tenha entre mãos, ordens sucintas, claras, sem contestação, que
o rei fez questão de vincar ao estafeta.
Instruções repetidas, numa tarde já
em declínio, o rei Duarte I não conseguiu mais sossego para tratar do que era devido,
pois a concentração não lhe vinha e sem ela de nada lhe valia a teima. No outro
dia, bem tarde, o rei Duarte I, já com uma resposta afirmativa de que o mano Henrique
tinha sido avisado, preparou tudo para na manhã seguinte viajar até Lisboa. Por
isso, mal rompeu o dia, acompanhado da sua corte itinerante, começou a viagem sem
nunca perder de vista o infatigável Tejo. Pensativo, segue sem revelar emoções nas
faces, a oculta e a visível, tanto mais que a modorra da caminhada sobre o animal
domado o fez pender a cabeça de sono. Os pensamentos não lhe despertam os sentidos
e assim o trote indolente do equino amolece-lhe a vivacidade. Mais adiante,
acordado do estado de sonolência que se tinha apoderado dele, começou a procurar
no horizonte o fim do destino, um lugar que nunca mais enxergava, atendendo a que
o transporte lhe magoava os rins e lhe aquecia as pernas até o suor escorrer.
Tudo justificava aquele desconforto
em cima do animal. A falta de outra compensação, a conversa que ia ter com o
infante Henrique indemnizá-lo-ia certamente de todos os pequenos sacrifícios que
uma viagem daquelas comportava. Já a maior distância tinha sido vencida, o rei voltou
a falar sozinho: agora que caminho para Lisboa e para a corte ao encontro de Henrique,
o conselheiro da minha espontaneidade, revejo-me sem soluções. Pior que isso, sinto-me
assaltado pelo cepticismo, um sentimento pior que a dúvida, porque provém de um
estado de alma inócuo. O rei Eloquente lá vai pachorrento em cima da montada, inseguro
nos pensamentos, preocupado com as incertezas, tudo problemas desagradáveis que
lhe fazem mal à saúde e lhe tiram a alegria. Esquece-se dos conselhos que os físicos
lhe deram quando teve de vencer a depressão, não os adopta e muito menos os pratica,
fixando-se em ideias que por certo conduzirão à opacidade os pensamentos claros.
Anda assim, há coisas que não mudam.
Dona Leonor, a paixão da sua vida, espera-o, continua a amá-lo como sempre e a festa
pode muito bem compensar os aborrecimentos. A excelente senhora desde que se casaram
teve todos os anos um filho, e até no ano de 1132 teve dois, um útero real na acepção
da palavra. Mas agora não! A excelente senhora já ultrapassou a quarentena pós-parto
do último feto que pariu, em Julho, um filho que morreu também logo que nasceu,
estando por isso num momento de inteira disponibilidade. Não, não! Dona Leonor
em princípio não estaria traumatizada pelo insucesso do parto, porque, sendo embora
a perda de um recém-nascido um acontecimento lúgubre, a rainha tinha força suficiente
para ultrapassar o infeliz momento com tolerância e ânimo valente, tal como se deve
pedir a quem tem sangue real.
Numa cavalgada quase ininterrupta,
a comitiva fez uma pausa mais prolongada para matar a fome a meio da jornada, esquema
já determinado num itinerário pensado em duas etapas. Retomado o caminho, o rei
voltou ao mundo povoado de incertezas, esforçando-se no entanto por encontrar
no espírito evasões para os seus enfados:
Será como Pedro alvitrou nas suas
cartas? Quererão os nobres construir um cenário que nos leve à guerra? Até hoje,
com o objectivo de guerrear alguém fora do nosso território, só autorizei uma expedição
às Canárias que meu irmão Henrique me propôs e eu avalizei em 1434, porque por seu
empenho tinha conseguido do papa Martinho V autorização para ocupar essas ilhas
pagãs, que não são de ninguém e Castela diz pertencer-lhe. Com uma bula sobre a
mesa e quase uma exigência sobre as costas, que é como quem diz, pressionado pela
Igreja e por Henrique, fui levado a ceder por me convencerem de que dali não vinha
grandes males para a armada que lá iria confirmar a soberania portuguesa e matar
mouros.
[…]
In Jorge Sousa Correia, O Mistério do
Infante Santo, 2013, Clube do Autor, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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