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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Chegou Novembro e Bernat
dedicou-se às tarefas próprias dessa época: pastorear os porcos para a matança,
acumular a lenha para a casa e para adubar a terra, preparar a horta e os campos
que seriam semeados na Primavera e podar e enxertar as vinhas. Quando
regressava a casa, Francesca já se tinha ocupado das tarefas domésticas, da
horta e das galinhas e coelhos. Noite após noite, servia-lhe o jantar em
silêncio e retirava-se para dormir; de manhã, levantava-se antes dele, e quando
Bernat descia, encontrava na mesa o pequeno-almoço e a trouxa com o almoço.
Enquanto comia, ouvia-a cuidar dos animais no estábulo. O Natal passou como um
suspiro e em Janeiro terminou a apanha da azeitona. Bernat não tinha muitas
oliveiras, mas apenas as necessárias para cobrir as necessidades da casa e para
pagar as rendas ao senhor. Depois, Bernat tratou da matança do porco. Em vida
do seu pai, os vizinhos, que raramente iam a casa dos Estany ol, nunca faltavam
no dia da matança. Bernat recordava-se desses dias como de verdadeiras festas;
matavam-se os porcos e depois comia-se e bebia-se, enquanto as mulheres
preparavam a carne.
Os Esteve, pai, mãe e dois dos
irmãos, apareceram certa manhã. Bernat saudou-os no terreiro diante da casa;
Francesca esperava atrás dele. Como estás, filha?, perguntou-lhe a mãe. Francesca
não respondeu, mas deixou-se abraçar. Bernat observou a cena: a mãe, ansiosa, estreitava
a filha nos braços, esperando que esta a rodeasse com os seus. Mas ela não o
fez. Permaneceu imóvel. Bernat dirigiu o olhar para o sogro. Francesca,
limitou-se a dizer Pere Esteve, com o olhar perdido mais para além da rapariga.
Os irmãos saudaram-na levantando uma mão. Francesca dirigiu-se à pocilga, para
ir buscar o porco; os outros ficaram no terreiro. Ninguém falou; apenas um
soluço sufocado da mãe rompeu o silêncio. Bernat sentiu-se tentado a
consolá-la, mas absteve-se, ao ver que nem o marido nem os filhos o faziam. Francesca
apareceu com o cevado, que resistia a segui-la como se soubesse que destino ia ter,
e entregou-o ao marido com o mesmo mutismo habitual. Bernat e os dois irmãos de
Francesca obrigaram o porco a deitar-se e sentaram-se em cima dele. Os guinchos
agudos do animal ressoavam por todo o vale dos Estany ol. Pere Esteve degolou-o
com um golpe certeiro e todos esperaram em silêncio enquanto o sangue do animal
caía nos alguidares que as mulheres iam mudando à medida que se enchiam.
Ninguém olhava para ninguém.
Nem sequer tomaram um copo de
vinho enquanto mãe e filha trabalhavam o porco, já esquartejado. Ao anoitecer,
terminada a tarefa, a mãe tentou de novo abraçar a filha. Bernat observou a cena,
esperando uma reacção por parte da sua mulher. Não houve nenhuma. O pai e os
irmãos despediram-se dela com os olhos postos no chão. A mãe aproximou-se de
Bernat. Quando te parecer que a criança está para chegar, disse-lhe,
afastando-o dos restantes, manda-me chamar. Não acredito que ela o faça. Os
Esteve tomaram o caminho de regresso a casa. Nessa noite, quando Francesca
subia a escada para o quarto, Bernat não pôde deixar de observar-lhe a barriga.
Em finais de Maio, no primeiro dia das colheitas, Bernat contemplou os seus
campos com a foice ao ombro. Como iria ele recolher sozinho todo aquele cereal?
Desde há quinze dias que proibira Francesca de fazer qualquer esforço, porque
já sofrera dois desmaios. Ela escutara as ordens em silêncio e obedecera.
Porque lho tinha ele proibido? Bernat voltou a olhar para os imensos campos que
o esperavam. No fim de contas, perguntava-se, e se o filho não fosse seu? As
mulheres pariam no campo, enquanto trabalhavam, mas depois de a ver cair, uma e
outra vez, não conseguira deixar de se preocupar. Bernat agarrou a foice e começou
a ceifar com força. As espigas saltavam no ar. O sol alcançou o meio-dia.
Bernat nem sequer parou para comer. O campo era imenso. Sempre tinha ceifado
acompanhado pelo pai, mesmo quando este já estava mal. O cereal parecia fazê-lo
reviver. Dá-lhe, filho!, animava-o. Não podemos esperar que uma tempestade ou o
granizo o destruam. E ceifavam. Quando um estava cansado, procurava apoio no
outro. Comiam à sombra e bebiam bom vinho, do seu pai, do envelhecido, e
conversavam e riam e..., agora só ouvia o silvar da foice a cortar o vento e a
golpear a espiga; nada mais; a foice, a foice, a foice, que parecia lançar ao
ar interrogações acerca da paternidade daquele futuro filho. Durante os dias
seguintes, Bernat continuou a ceifar até ao pôr do Sol; em alguns dias, trabalhou
mesmo à luz do luar. Quando regressava a casa, encontrava o jantar na mesa.
Lavava-se na manjedoura e comia com vontade. Até que uma noite, o berço que
construíra durante o Inverno, quando a gravidez de Francesca já era evidente,
se mexeu. Bernat deu-se conta disso pelo canto do olho, mas continuou a comer a
sopa. Francesca dormia no andar de cima. Bernat voltou a olhar para o berço.
Mais uma colherada de sopa, duas, três. O berço voltou a mexer-se.
Bernat ficou a olhar para o berço,
com a quarta colherada de sopa suspensa no ar esquadrinhou o resto da sala,
procurando algum sinal da presença da sogra... Mas não. Ela dera à luz
sozinha... E fora-se deitar. Pousou a colher e levantou-se, mas antes de chegar
perto do berço, parou, deu meia-volta e tornou a sentar-se. As dúvidas acerca
daquele filho caíram sobre ele com mais força do que nunca. Todos os Estany ol
têm um sinal junto ao olho direito, dissera-lhe o pai. Ele tinha-o, e o pai
também. O teu avô também o tinha, assegurara-lhe, e também o pai do teu avô. Bernat
estava esgotado: trabalhara de sol a sol. Durante muitos dias o fizera. Voltou
a olhar para o berço. Levantou-se de novo e aproximou-se da criatura. Dormia
placidamente, com as mãozinhas abertas, coberta por um lençol feito com os
trapos de uma camisa branca de linho. Bernat deu a volta ao bebé para lhe ver o
rosto». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009,
ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT