Cortesia
de wikipedia e jdact
Elena.
A filha da princesa
«(…)
Olho pela janela do carro. É impossível evitar as comparações: lado a lado com o
povoado da Nigéria, Perla é a visão do paraíso na Terra. Quero dizer, ela sempre
foi linda, charmosa, agradável. Mas, depois de passar seis meses num lugar que
parece ter sido abandonado por Deus, a capital da Krósvia, minha cidade natal,
meu lar, parece ser ainda mais incrível. Pena que meu poder de deslumbramento
tenha minguado um pouco desde que conheci a outra face da realidade, chocante,
miserável, terrível. A vida jamais será a mesma depois de morar por seis meses
naquele povoado nigeriano. Viro-me para meu pai e sorrio. É bom estar em casa. Sabe
que a sua mãe vai exigir que se alimente como se o mundo estivesse prestes a
acabar, não é?, comenta o pai, em tom de brincadeira. Ele nunca resiste a uma
piadinha. Mãe diz que o seu Alex é o rei das tiradas de efeito. Rio-me antes de
responder, mas não tenho nenhuma chance, porque ele logo emenda: você está
muito magra. Dá até para enxergar os ossos da costela. Exagero dele. Sei que
emagreci. Tenho plena consciência disso. Na África, não conseguia alimentar-me
muito bem. Mas uns quilos a menos não chegaram a fazer grande diferença para
mim. Na verdade, estou até gostando. Pelo menos, o meu quadril avantajado deu
uma reduzida. Reviro os olhos e volto a observar a paisagem. Meu pai dirige
pelas ruas de Perla em direcção ao Palácio Sorvinski. Nós temos a nossa casa.
Fica na periferia da cidade. Foi construída quando eu ainda era pequena. Meu
pai fez o projecto, claro, do jeito que minha mãe sonhava, ou seja, nada de ângulos
rectos e de aparência clean.
A nossa casa reproduz o estilo colonial das cidades históricas brasileiras,
inspirada nas construções de Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. No entanto,
assim que foi diagnosticada a gravidez de risco da mãe, meu avô, o todo-poderoso
(e fofo) rei Andrej Markov, insistiu que ela e, consequentemente, todos nós,
ficássemos no castelo, onde haveria alguém para cuidar dela 24 horas por dia.
Claro que, primeiro, a princesa
Ana bateu o pé. Mas acabou vencida por muitas vozes contrárias. Eu, da minha
parte, se querem saber, estou achando óptimo. Adoro o palácio, a praia
particular, os jardins, as pessoas, a comida de Karenina..., tudo! Sigo
devaneando sobre os bons tempos que passarei com minha família. Porém, a minha
euforia se desvanece um pouco ao lembrar-me de que, como meu período como
voluntária na Nigéria ainda não acabou, estou impossibilitada de voltar para a
faculdade. Isso significa que logo, logo meu quadril retornará ao tamanho
original. Ócio + a comida de Karenina se encarregarão de cuidar dele. Ao
avistar as torres do Palácio Sorvinski, uma emoção familiar invade o meu corpo.
Prepare-se. Estão esperando por você com as honras e pompas dispensadas à neta
do rei, avisa o pai, com uma expressão divertida. Não me importo nem um pouco
de ser apaparicada. Então, animada, deixo meu pai envolver os meus ombros com o
braço e seguimos até a entrada do castelo, sentindo o estômago revirar por
antecipação. Nada como a saudade para nos fazer reafirmar os nossos sentimentos
pelas pessoas que amamos. Mal me vejo dentro dos limites do palácio, e várias
vozes e braços queridos me assaltam. Elena! Florzinha, que bom que chegou!,
exclama Irina, como sempre no ápice da animação.
Ela não é minha avó de verdade
nem a considero assim, apesar de ser a esposa do meu avô Andrej e actual rainha
da Krósvia. Irina é uma amiga das mais queridas, alguém com quem posso contar
em todas as ocasiões, mesmo depois de ter se tornado mãe e se envolvido com
todos os problemas da função. E por falar em tio... Já pedi ao Petrov para
deixar a lancha a postos. Vamos marcar amanhã? Quem disse isso foi Hugo, meu
tio, filho de Andrej e irmão da minha mãe». In Marina Carvalho, Elena,
A
filha da princesa, 2015, Editora Record, 2015, ISBN 978-850-110-436-6.
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