terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

A Roda do Tempo. O Olho do Mundo. Robert Jordan. «O sol fraco pairava acima da vegetação a leste, mas a sua luz era fria e apagada, como se misturada à sombra»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma Estrada Deserta
«A Roda do Tempo gira, e Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas. As lendas desvanecem em mitos, e até o mito já está há muito esquecido quando a Era que o viu nascer retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, uma Era ainda por vir, uma Era há muito passada, um vento se ergueu nas Montanhas da Névoa. O vento não era o início. O girar da Roda do Tempo não tem inícios nem fins. Mas era um início. Nascido abaixo dos picos eternamente cobertos por nuvens que davam à montanha o seu nome, o vento soprava para leste, atravessando as Colinas de Areia, outrora as margens de um grande oceano, antes da Ruptura do Mundo. Ele desceu e fustigou os Dois Rios, penetrando na mata densa chamada de Floresta do Oeste, e flagelou dois homens que seguiam com uma carroça e um cavalo por uma via estreita e pedregosa chamada de Estrada da Pedreira. Ainda que a Primavera devesse ter chegado um bom mês antes, o vento trazia consigo um arrepio gelado, como se preferisse trazer a neve. Rajadas colavam o manto de Rand al’Thor às suas costas, chicoteavam a lã cor de terra ao redor das suas pernas e depois a faziam tremular atrás dele. Rand desejou que o seu casaco fosse mais pesado ou que tivesse vestido uma camisa extra. Metade das vezes em que tentava puxar o manto, trazendo-o de volta à frente do corpo, ele se prendia na aljava que balançava nos seus quadris. Tentar segurar o manto com uma das mãos não ajudava muito; na outra mão ele segurava o arco, a flecha encaixada, pronta para disparar. Quando uma rajada particularmente forte arrancou o manto da sua mão, ele olhou de relance para o pai por cima do dorso da égua castanha peluda. Sentia-se um tanto tolo por querer assegurar-se de que Tam ainda estava ali, mas era um daqueles dias. O vento uivava, mas, tirando isso, o silêncio na terra era pesado. Comparado a ele, o suave rangido do eixo da carroça soava alto. Nenhum pássaro cantava na floresta, nenhum esquilo se agitava nos galhos das árvores. Não que ele esperasse ouvi-los, de facto; não naquela Primavera. Somente as árvores que não perdiam as suas folhas ou agulhas durante o Inverno tinham algum vestígio de verde. Restos dos espinheiros do ano anterior espalhavam teias castanhas sobre as pedras por baixo das copas. As urtigas eram maioria entre as poucas ervas; o resto era do tipo que tinha carrapichos afiados, espinhos ou trombeteiras, que deixavam um cheiro rançoso na bota descuidada que as esmagasse. Trechos brancos e dispersos de neve ainda pontilhavam o chão onde as árvores se adensavam e conservavam uma sombra mais sólida. O sol fraco pairava acima da vegetação a leste, mas a sua luz era fria e apagada, como se misturada à sombra. Era uma manhã estranha, própria para se ter pensamentos desagradáveis.
Sem pensar, ele tocou a rabeira da flecha; estava pronta para ser puxada até ao seu rosto num único e suave movimento, do jeito que Tam lhe ensinara. O Inverno havia sido bastante ruim nas fazendas, o pior de que até mesmo as pessoas mais velhas se lembravam, mas devia ter sido ainda mais duro nas montanhas, se o número de lobos levados a descer para os Dois Rios servia de indicativo. Eles atacavam os redis de ovelhas e invadiam os celeiros atrás do gado e dos cavalos. Os ursos também haviam atacado ovelhas, mesmo onde um urso não era visto havia anos. Já não era seguro andar por aí após o anoitecer. Homens se tornavam presas com a mesma frequência das ovelhas, e nem sempre era preciso que o sol se tivesse posto. Tam caminhava a passo firme do outro lado de Bela, usando a lança como cajado, ignorando o vento que fazia o seu manto castanho drapejar como um estandarte. De vez em quando tocava levemente o flanco da égua, para lembrá-la de seguir em frente. Com o peito forte e o rosto largo, ele era um pilar de realidade naquela manhã, como uma pedra no meio de um sonho flutuante. A face marcada pelo sol podia ter as suas rugas, e os cabelos, apenas uns poucos fios pretos, mas havia nele uma solidez, como se uma enchente pudesse passar por ele sem tirar seus pés do lugar. Agora seguia pela estrada, impassível. Lobos e ursos não eram um problema, dizia a sua postura, criaturas a que qualquer pastor de ovelhas devia estar atento, mas era melhor que não tentassem impedir Tam al’Thor de chegar a Campo de Emond. Começando a sentir-se culpado, Rand voltou a vigiar seu lado da estrada, a atitude simples e directa de Tam fazendo-o lembrar-se de sua tarefa. Ele era uma cabeça mais alto que o pai, mais alto que qualquer pessoa no distrito, e tinha pouco de Tam fisicamente, excepto talvez os ombros largos. Os olhos cinzentos e o tom avermelhado dos cabelos vinham da mãe, assim dizia Tam. Era estrangeira, e, além de um rosto sorridente, Rand pouco se recordava dela embora pusesse flores em seu túmulo todos os anos, no Bel Tine, na Primavera, e aos domingos, no Verão». In Robert Jordan, A Roda do Tempo, O Olho do Mundo, 1990, Editora Intrínseca, 2013, ISBN 978-858-057-362-6.

Cortesia de EIntríseca/JDACT