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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) O
toque do telefone móvel assusta-a de tal maneira que num momento está junto à
janela e no outro está sentada no sofá, quase sem saber como. O choque de
adrenalina a fizera esbarrar nas costas do sofá e, por sorte, ao tropeçar,
caíra sentada no lado almofadado. Noutro dia, com menos sorte, poderia ter
batido com a cara no chão. É melhor não ter deliberadamente esse tipo de
pensamentos torturantes. Assim sendo, tem apenas de atender o telefone, que,
afortunadamente, permanece na sua mão. Yes? Olá, Sarah. Pai! Até que enfim...
Onde estava? Finalmente o progenitor
responde à mensagem. O alívio de ouvir a voz serena do capitão Raul Brandão
Monteiro, seu pai antes de qualquer filiação militar ou profissional, age nela
como uma chamada de regresso à Terra. Nesse instante, tudo já passou e se tornou
irrisório. Tudo por uma carta com o nome do pai nela escrito. Levanta-se e dirige-se
novamente à janela. Espiões, agentes secretos, sua vida vigiada e em perigo, o
gari recolhendo os sacos de lixo que já não se vê lá fora. A cortina fechada do
segundo andar do Hollyday Express, onde a hóspede falava ao telefone sem tirar
os olhos da rua. Tudo passou. Apenas o carro permanece. Mas nem ele a alvoroça
mais. É o carro de alguém normal, conhecido como civil, que teve a sorte de
encontrar aquele lugar para estacionar. O facto de ser escuro e ter os vidros
negros, é uma opção pessoal do comprador; gosto não se discute, e mau gosto
também não. Tudo passou, e a calma volta a tomar posse do seu lugar destacado
na vida de Sarah. Fui levar a sua mãe... Aonde? Foi levar a mãe aonde? Sarah...
Mau. A voz do pai não está tão serena assim. Na verdade, nunca havia notado
tanta agitação na sua voz. O súbito alívio que sentira havia segundos volta a
dar lugar ao peso da dúvida, ao nervosismo deflagrado pela voz gutural,
normalmente acolhedora e melodiosa; mas hoje não é um dia normal. O pai não
está bem, o que faz com que ela siga os passos dele nessa matéria de humores e
receios. Recebi um envelope de um tal... Eu sei. Não precisa dizer nomes.
Sarah, lembre-se: a partir de agora, não diz mais nomes nem a sua localização.
A ninguém, entendeu? A não ser que eu diga que é de confiança. Pai, está-me
assustando. Sabe da carta?
Silêncio é
a primeira resposta. Mas não é hora de mais omissões. Se houvesse segredos, se
houvesse mentiras ocultas, agora era tempo de lhes dar vida, de lhes mostrar a
luz novamente. E de corrigi-las. Pai, não me esconda nada, por favor. O seu
nome vem numa lista… Droga, Sarah! Já lhe disse para não falar mais sobre isso.
Sei o que recebeu... A voz elevada contém o rancor de algo mantido na penumbra,
fechado a sete chaves, bem no fundo do local para onde vão as coisas que não
queremos voltar a relembrar. É isso que reflecte o tom de Raul: o de alguém que
perdeu o controle de algo que, mal ou bem, estava domado. Sei o que recebeu,
afiança, de um modo esforçadamente mais calmo, mas eles não sabem, e estão com
certeza nos ouvindo.
Eles quem,
pai? Um pequeno indício de pânico assoma as palavras dela, provocando um tremor
inconsciente, quase lacrimejante. Agora não é hora de falar. É hora de agir,
filha. Lembra-se da casa da avó? O quê? O que interessa isso agora? Lembra-se
ou não? Da casa? Claro que sim! Como posso esquecer? Óptimo. Um vulto. O
pequeno sintoma de pânico transformara-se num ataque sério. Sorte de Sarah que
tal não se exprima verbalmente na forma de grito, mas antes num arrepio frio,
que desvela os elos da espinha e os comprime de maneira que as costas se
endireitam qual soldado em sentido numa formatura qualquer de quartel. Sarah,
chama a voz do pai no outro lado da linha imaginária. Mas Sarah continua na sua
letargia temerosa, erecta como um soldado a olhar a janela e o vulto que nela
acabou de passar sem se dar conta de que alguém a espreitava. Alguém que rodeia
a casa e se dirige para a porta.
Sarah? A
voz do pai pede a atenção urgente da filha. Ela ouve os passos do lado de fora
da casa. Seguros, firmes, pesados, cadenciados, sem pressa, o tempo a favor
deles. Parece hipnotizada pelo seu som enquanto percorrem o resto do espaço
entre a janela e a porta. Um monstro, um gigante de homem, pois nenhuma mulher
seria capaz daquele efeito tenebroso, na opinião de Sarah. Um assassino
profissional? Um torturador qualificado? Sarah!, soou a voz do pai, a puxá-la
para a Terra. Estou ouvindo. Lembra-se do medo que sentia quando dormíamos e os
animais ficavam muito perto da casa? Sim. Lembro-me perfeitamente. Ela ficava
furiosa por eu ter medo deles. E com razão... Ding. Dong. A campainha. A
campainha está tocando. Tenho de ir... Nem pense em abrir essa porta!,
interrompe o pai, num rompante. Uma ordem, não um pedido. Pai, não sou mais um
dos seus soldados. Eu sei. Desculpe, Sarah. Tenho muito a lhe contar. Coisas
que devia ter falado há muito tempo, mas..., isso vai ter de esperar até que
esteja sã e salva. Ding. Dong». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
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