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As
Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Deitei água fria em tal
disparate. Era impossível entrar em Silves sem ser descoberto, muito menos
chegar à fala com a princesa. Mem teria de ser paciente até que um dia a garra de
Ibn Qasi afrouxasse e Zaida pudesse escapar-se daquela opressão inglória e
infeliz. Ela jamais colocará a filha Maryam em risco. Após um longo silêncio, Mem
sorriu-me e disse: já sou cavaleiro. Quando a Zaida fugir, caso-me com ela! O recente
título enchia-lhe o coração de urna grandiosa expectativa e falava como se um destino
inexorável tivesse sido corrigido. Uma princesa que aspirava ao trono de Córdova
nunca poderia desposar um almocreve, mas podia fazê-lo com um cavaleiro portucalense.
Ele só tinha de aguardar pelo momento certo.
Muita paciência,
traz sapiência.
Assim sendo, Mem aceitou a sugestão
que Chamoa lhe fez. A minha cunhada desafiara-nos, a mim e à minha Maria, a uma
ida a Tui, onde ela iria também passar o Natal, com dona Justa e os seus seis filhos.
E, saudosa do seu amigo, mas pensando também em Pêro Pais, que se aborrecia muito
no Norte, Chamoa estendeu o convite a Mem e às três irmãs moçárabes. Sente-se
sozinha e quer-nos todos por lá, comentou a minha esposa, Maria Gomes. Na verdade,
meus queridos filhos e netos, eu sabia que não era apenas a saudade que movia a
minha cunhada. Chamoa já fora visitar o pai, Gomes Nunes, que lhe contara novidades
sobre a intriga de Compostela...
Tui, Dezembro de 1146
Meu pai envelheceu muito. Está triste,
e quase cego. A lamentosa descrição de Chamoa comoveu-me e tive pena do meu sogro,
Gomes Nunes, que muito estimava. O imperador Afonso VII punira-o com exagerada dureza,
obrigando-o não só à perda do título de conde de Toronho, mas também a um retiro
forçado no mosteiro portucalense de Pombeiro, perto de Guimarães. Vigiado em
permanência, o pacato Gomes Nunes aceitara o castigo com a habitual submissão. Semanas
antes, Chamoa visitara-o. Aquela extremosa filha emocionara-se com a solidão do
pai, que sofria de saudades, fosse dos netos, fosse das criaditas e das padeiras
de Tui. Os monges são uns chatos, queixara-se Gomes Nunes. Não lhe permitiam visitas
nocturnas. Ainda tentara suborná-los, mas, sem sucesso, entediava-se, um queixume
que fez Chamoa sorrir.
Tenho a quem
sair...
Moía-o também uma humilhação
permanente: a sua mulher, Elvira Peres Trava, vivia alegremente no castelo que fora
de ambos. Diz-se que tem dois amantes, a marafona!, barafustara Gomes Nunes, mais
invejoso do que raivoso. Chamoa confrontara o pai com a inconfidência do monge Leopoldo
acerca das idas secretas ao Mosteiro de Cárquere.
Embaraçado, Gomes Nunes emudecera,
obrigando Pêro Pais, o seu neto mais estimado, a insistir: haveis tido mais filhos?
Corado, Gomes Nunes confirmara as suas responsabilidades na gravidez de várias
padeiras e criaditas de Tui. Após o nascimento dos rebentos, presenteava as mães
com casas e terrenos para cultivo. De seguida, colocava os bebés numa cesta e levava-os
de carroça até Cárquere, onde os depositava à guarda dos monges. Quantos irmãos
ou irmãs tenho?, perguntara Chamoa. A custo, seu pai lá acabara por admitir que,
em trinta e tal anos, lançara ao mundo dez crianças. E onde estão agora?, -questionara
Pêro Pais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
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