sábado, 29 de fevereiro de 2020

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Então, Gomes Nunes sugerira que a filha falasse com a mãe, Elvira Peres Trava. A família da mulher sempre dominara a Galiza. A Elvira sabe muito!...»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Tui, Dezembro de 1146
«(…) O meu sogro explicara-lhes os procedimentos em Cárquere. As crianças cresciam no mosteiro até aos doze anos, momento em que conheciam o seu destino. Os rapazes eram perfilhados por agricultores ou entregues a cavaleiros-vilãos, que os adoptavam como escudeiros, levando-os para os territórios a povoar no Sul. Quanto às meninas, aprendiam o ofício de criadas, padeiras, lavadeiras ou taberneiras, mas as mais bonitas eram cedidas aos cavaleiros-vilãos, como esposas. Ninguém voltava a Cárquere. Garanto-vos que não fui o único rico-homem portucalense a lá deixar pecadilhos!, rematara o meu sogro. Curiosa, Chamoa murmurara: Egas Moniz? Gomes Nunes confirmara que meu pai tinha também levado uma menina a Cárquere. Depois, acrescentara: e o vosso marido...
Surpreendida, Chamoa franzira as sobrancelhas. Paio Soares tinha mais de quarenta anos quando casara com ela, que só lhe conhecia um filho bastardo, o templário Ramiro. Pelos vistos, havia mais. Durante o tempo que estivemos casados?, perguntara. O pai tranquilizara-a, os pecados do marido eram anteriores ao matrimónio, mas Chamoa encolhera os ombros.
Cor… de morto, já nasce torto.
Curiosa, perguntou ao pai se acreditava na história de Afonso Henriques ser um aleijadinho trocado, mas o meu sogro revelara-se descrente. A intriga de Compostela soava-lhe a uma trapalhada, típica da maliciosa rainha Urraca. Afonso VII limitava-se a seguir as pisadas da mãe. Algo se passou, afirmara Chamoa. Então, Gomes Nunes sugerira que a filha falasse com a mãe, Elvira Peres Trava. A família da mulher sempre dominara a Galiza. A Elvira sabe muito!, insinuara Gomes Nunes.

Quando as nossas duas comitivas se juntaram, já perto de Tui, e depois de relatar a conversa com o pai, Chamoa revelou a sua apreensão e nervosismo, por se ir encontrar com a mãe. Há muitos anos que não falava com Elvira Trava. Vira-a pela última vez em Arcos de Valdevez e não tinha saudades daquela desagradável criatura.
É uma ruim senhora...
A minha sogra Elvira considerava a filha uma traidora aos interesses familiares dos Trava. Porém, Chamoa levava mais a peito a forma como a mãe destratara o pai. Além de o encornar repetidamente, deixara-o cair em desgraça.
Quis ser dona de Tui e de tudo em redor...
Fosse como fosse, era imperativo reconhecer que Elvira Trava tinha jeito para a lavoura. À volta de Tui, os campos prosperavam e confirmei, ao vê-la, que talento e amabilidade nem sempre andavam juntos. A minha sogra era de uma energia inesgotável, mas também dura e implacável. Um coração de granito, que mantinha vibrantes e acesas as iras antigas.
Quem mais a incomodava era o neto, Pêro Pais, que logo desprezou, insinuando que nunca chegaria a alferes, pois Gonçalo Sousa não deixaria o posto. Aliás, avó e neto estiveram quase a engalfinharem-se, quando a matrona de braços fortes, observando Mem e as três moçárabes que connosco vinham, se indignou: e chamam-me devassa? Olhai para vós! Um almocreve para Chamoa e três mouras para o filhote! Xô, fora daqui, suas infiéis! Ide chupar gaitas em Portugal!
A intervenção pacificadora de minha mulher, Maria Gomes, permitiu atingir um ténue equilíbrio entre aqueles pecadores. Naquela estouvada família, ninguém era isento de erros, todos tinham as suas falhas e excessos. Impunha-se, pois, um armistício nos insultos mútuos. Para mais, não viéramos ajustar contas familiares, mas sim tentar esclarecer a obscura intriga de Compostela. Agora precisam dos Trava?, provocou Elvira. Acalmei-a e ela lá acabou por conceder que, ao longo dos anos, ouvira rumores. Dona Teresa não tinha certezas sobre o filho». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
                                                 
Cortesia da CasadasLetras/JDACT