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As
Crianças de Cárquere. 1146
Tui, Dezembro de 1146
«(…) O meu sogro explicara-lhes
os procedimentos em Cárquere. As crianças cresciam no mosteiro até aos doze
anos, momento em que conheciam o seu destino. Os rapazes eram perfilhados por
agricultores ou entregues a cavaleiros-vilãos, que os adoptavam como
escudeiros, levando-os para os territórios a povoar no Sul. Quanto às meninas,
aprendiam o ofício de criadas, padeiras, lavadeiras ou taberneiras, mas as mais
bonitas eram cedidas aos cavaleiros-vilãos, como esposas. Ninguém voltava a
Cárquere. Garanto-vos que não fui o único rico-homem portucalense a lá deixar
pecadilhos!, rematara o meu sogro. Curiosa, Chamoa murmurara: Egas Moniz? Gomes
Nunes confirmara que meu pai tinha também levado uma menina a Cárquere. Depois,
acrescentara: e o vosso marido...
Surpreendida, Chamoa franzira as
sobrancelhas. Paio Soares tinha mais de quarenta anos quando casara com ela, que
só lhe conhecia um filho bastardo, o templário Ramiro. Pelos vistos, havia
mais. Durante o tempo que estivemos casados?, perguntara. O pai tranquilizara-a,
os pecados do marido eram anteriores ao matrimónio, mas Chamoa encolhera os
ombros.
Cor… de morto,
já nasce torto.
Curiosa, perguntou ao pai se
acreditava na história de Afonso Henriques ser um aleijadinho trocado, mas o
meu sogro revelara-se descrente. A intriga de Compostela soava-lhe a
uma trapalhada, típica da maliciosa rainha Urraca. Afonso VII limitava-se a
seguir as pisadas da mãe. Algo se passou, afirmara Chamoa. Então, Gomes Nunes
sugerira que a filha falasse com a mãe, Elvira Peres Trava. A família da mulher
sempre dominara a Galiza. A Elvira sabe muito!, insinuara Gomes Nunes.
Quando as nossas duas comitivas
se juntaram, já perto de Tui, e depois de relatar a conversa com o pai, Chamoa
revelou a sua apreensão e nervosismo, por se ir encontrar com a mãe. Há muitos
anos que não falava com Elvira Trava. Vira-a pela última vez em Arcos de
Valdevez e não tinha saudades daquela desagradável criatura.
É uma ruim
senhora...
A minha sogra Elvira considerava
a filha uma traidora aos interesses familiares dos Trava. Porém, Chamoa levava mais
a peito a forma como a mãe destratara o pai. Além de o encornar repetidamente, deixara-o
cair em desgraça.
Quis ser dona de
Tui e de tudo em redor...
Fosse como fosse, era imperativo
reconhecer que Elvira Trava tinha jeito para a lavoura. À volta de Tui, os
campos prosperavam e confirmei, ao vê-la, que talento e amabilidade nem sempre
andavam juntos. A minha sogra era de uma energia inesgotável, mas também dura e
implacável. Um coração de granito, que mantinha vibrantes e acesas as iras antigas.
Quem mais a incomodava era o
neto, Pêro Pais, que logo desprezou, insinuando que nunca chegaria a alferes, pois
Gonçalo Sousa não deixaria o posto. Aliás, avó e neto estiveram quase a engalfinharem-se,
quando a matrona de braços fortes, observando Mem e as três moçárabes que connosco
vinham, se indignou: e chamam-me devassa? Olhai para vós! Um almocreve para
Chamoa e três mouras para o filhote! Xô, fora daqui, suas infiéis! Ide chupar
gaitas em Portugal!
A intervenção pacificadora de
minha mulher, Maria Gomes, permitiu atingir um ténue equilíbrio entre aqueles pecadores.
Naquela estouvada família, ninguém era isento de erros, todos tinham as suas
falhas e excessos. Impunha-se, pois, um armistício nos insultos mútuos. Para
mais, não viéramos ajustar contas familiares, mas sim tentar esclarecer a
obscura intriga de Compostela. Agora precisam dos Trava?, provocou
Elvira. Acalmei-a e ela lá acabou por conceder que, ao longo dos anos, ouvira
rumores. Dona Teresa não tinha certezas sobre o filho». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
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