sábado, 22 de fevereiro de 2020

A Rainha Perfeitíssima. Paula Veiga. «Durante os anos seguintes, meu pai acumulou ilhas, proventos, rendimentos e, consequentemente, tornou-se o homem mais poderoso do reino»

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Beja, Paço Ducal, 2 de Junho de 1459
«(…) Neste dia desapareceu uma das figuras mais importantes do reino, o Infante Henrique, que partia assim para a sua última viagem. O infante Henrique, o quinto filho de D. João I e de dona Filipa de Lencastre, foi naquela época o nobre mais rico de Portugal. Deu início à campanha da conquista do Norte de África, nomeadamente à tomada de Ceuta, e depois fomentou a era dos Descobrimentos com a descoberta e povoamento de novas terras, como as Ilhas Atlânticas. Apesar de não ter privado com o Infante, uma vez que ainda era criança, testemunhei mais tarde que este homem personificava a coragem, o dinamismo e o espírito empreendedor do nosso povo e do nosso reino. É importante falar na morte do Infante, porque Henrique adoptara e nomeara seu herdeiro o sobrinho, meu pai. O meu progenitor, que após a morte do Navegador recebeu bens, cargos e títulos. Ao receber o título de Duque de Viseu, começou também a dirigir esse grande empreendimento que foi mais tarde denominado de Os Descobrimentos. Durante os anos seguintes, meu pai acumulou ilhas, proventos, rendimentos e, consequentemente, tornou-se o homem mais poderoso do reino. Por isso mesmo era desejável que eu, a sua filha mais velha, fosse prometida ao filho do Rei. Não me quero adiantar na história, mas de facto foi isso que veio a suceder seis anos mais tarde, quando eu ainda era uma criança de oito anos e o João de onze.
Também o casamento de Isabel começou a ser negociado desde cedo. Fora prometida a Fernando, conde de Guimarães e futuro herdeiro do ducado de Bragança. Meu procriador era um homem ambicioso e pretendia alargar o seu poder através de casamentos bem-sucedidos para as suas filhas, estabelecendo desde logo alianças políticas profícuas. Naquela época era assim, as infantas eram sempre um trunfo político a ser bem jogado. A nossa mãe apoiava vigorosamente a ideia, porque assim não teria de ver nenhuma das suas filhas partir para um reino distante, como acontecera tantas vezes com outras filhas da nobreza. Era inevitável que as mães fidalgas vissem sistematicamente partir os seus filhos para que estes cumprissem a sua obrigação, quer para com a família real quer para com o reino. À semelhança do que acontecera com Isabel de Avis, que casara com Afonso V, também eu, filha de duques e infanta portu­guesa, viria a ocupar o trono de Portugal. Não poderia ambicionar mais. Também o facto de a minha irmã Isabel poder vir a casar com um nobre de alta linhagem, e assim permanecer no reino, deixava-me contente, porque de facto ela era a minha companheira de brincadeiras e mais tarde, pela vida fora, foi a minha melhor amiga e confidente.
Durante vários anos brincámos em conjunto e corremos pelos jardins do paço. Aprendemos as primeiras letras juntas. Foi uma infância feliz apesar de termos enfrentado alguns períodos difíceis, nomeadamente o desaparecimento do meu irmão mais velho. Nestas alturas, o paço ficava invariavelmente silencioso e a nossa mãe refugiava-se na Igreja. Mas era desejável que a vida voltasse ao normal; depois de mui­tos dias sombrios, o Sol voltava a nascer e as brincadeiras e correrias faziam-se sentir outra vez nos corredores do palácio. Era uma vida despreocupada e cheia de felicidade». In Paula Veiga, A Rainha Perfeitíssima, 2017, Edições Saída de Emergência, 2016/2017, ISBN 978-989-773-014-6.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT