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Auschwitz-Birkenau,
Janeiro de 1944
«(…)
Ela se dá conta de que já ouviu
antes essa maneira tão peculiar de assobiar as sinfonias, com tal precisão de
melómano. Foi depois de viajarem amontoados durante três dias num vagão de
carga fechado, sem comida nem água, vindos do gueto de Terezín, para onde foram
deportados ao serem expulsos de Praga e onde viveram durante um ano. Era noite
quando chegaram a Auschwitz-Birkenau. Impossível esquecer o barulho de sucata
do portão metálico se abrindo. Impossível esquecer a primeira baforada de um ar
gelado que cheirava a carne queimada. Impossível esquecer os clarões de luz,
intensos na noite: a plataforma estava iluminada como uma sala de cirurgia. E
depois, as ordens, os golpes de culatras contra as paredes do vagão, os disparos,
os apitos, os gritos. E, no meio da confusão, essa sinfonia de Beethoven impecavelmente
assobiada com a mais absoluta calma por um capitão, um Hauptsturmführer, para o
qual os próprios SS olhavam com pavor. Naquele dia, o oficial passou perto de
Dita, e ela viu o seu uniforme impecável, as luvas brancas imaculadas e a cruz
de ferro sobre o peitilho da jaqueta; uma medalha que só se ganha em combate.
Ele parou diante de um grupo de mães e filhos e deu uma amistosa palmadinha com
a mão enluvada num dos pequenos. Até sorriu. Apontou para dois gémeos de 14
anos, Zdenek e Jirka, e um cabo se apressou a tirá-los da fila. A mãe agarrou o
guarda pela aba da jaqueta e se pôs de joelhos, implorando que não os levasse.
O capitão interveio com absoluta calma: num lugar algum eles serão tratados como
tio Josef os tratará. E, de certo modo, assim seria. Ninguém em Auschwitz
tocava num fio de cabelo dos gémeos que o doutor Josef Mengele coleccionava
para as suas experiências. Ninguém os trataria como ele nos seus macabros genéticos
para averiguar como fazer para que as alemãs dessem à luz gémeos e assim
multiplicassem os nascimentos arianos. A menina se lembra de Mengele se
afastando de mãos dadas com os garotos sem deixar de assobiar placidamente. A
mesma sinfonia que agora se ouve no bloco 31.
Mengele...
A
porta do quarto do responsável pelo bloco se abre com um ligeiro chiado, e o
Blockältester Hirsch sai de seu minúsculo cubículo fingindo ter uma agradável
surpresa com a visita dos SS. Bate sonoramente os calcanhares para saudar o
oficial. É uma forma respeitosa de reconhecer a patente do militar, mas também
uma maneira de mostrar uma postura marcial, nem submissa, nem acobardada.
Mengele mal olha para Hirsch, está distraído e continua assobiando com as mãos
para trás, como se nada daquilo fosse por sua causa. O sargento, o Padre, como
todos o chamam, esquadrinha o barracão com seus olhos quase transparentes sem
tirar, todavia, as mãos de dentro das mangas da jaqueta, caídas sobre o colo, não
muito distantes da capa da pistola. Jakopek não se enganou. Inspeção, sussurra
o Obersharführer.
Os SS que o acompanham repetem a sua
ordem e a amplificam, até transformarem-na num grito que penetra os tímpanos
dos prisioneiros. Dita, no grupo das garotinhas, sente um calafrio, aperta os
braços contra o corpo e ouve os livros roçando nas suas costelas. Se a pegarem
com eles, será o fim de tudo. Não seria justo..., murmura. Tem 14 anos e a vida
por estrear, tudo por fazer. Nada pôde sequer começar. A Dita lhe vêm à cabeça
estas palavras que sua mãe repete há anos, de maneira maçadora, quando ela
lamenta a própria sorte: é a guerra, Edita... É a guerra. Era tão pequena que
quase já não lembra como era o mundo quando não existia a guerra. Tal como
esconde os livros sob o vestido nesse lugar onde arrebataram tudo, também
guarda na cabeça um álbum de fotografias feito de lembranças. Fecha os olhos e
trata de evocar como era o mundo quando não existia o medo. Ela se vê com nove
anos de idade, parada em frente ao relógio astronómico da praça da Cidade
Velha, em Praga, no início de 1939. Olhava meio de soslaio para o velho
esqueleto a vigiar os telhados da cidade com as suas órbitas vazias, enormes
como punhos negros». In Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária de
Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-657-432-1.
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