Cortesia
de wikipedia e jdact
«Em noites de lua cheia,
Já se não ouve o
cantar
Daquela triste
Sereia!
Oh pobre rapariga
caída,
Já sobre ti se
fecharam
Os abismos desta
vida!
Diz-me, diz-me, ó lua
cheia,
Choras tu na
sepultura
Daquela pobre Sereia?
Em que finar-se vão
findos
Aqueles cabelos
douro,
Aqueles olhos tão
lindos!
Águas malditas, pudeste,
Tão linda e nova, mata-la,
Matar a pomba celeste!
Ai! pobre anjo da má sorte!
Descansa, em fim, que não voltas
Desses abismos da morte!
Nos céus passa a lua cheia
Para ouvir os teus cantares,
E tu não voltas, Sereia!
Mas um raio de luz pura
Coa-se através dos vidros
Sobre a tua sepultura».
Estes
melancólicos tercetos, escritos há cem anos, que significado tiveram?
Encontrei-os num livro manuscrito datado de 1768. Em cinquenta páginas de prosa
do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos.
«Estamos
no dia 15 de Maio de 1762.
Naquele
tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados,
encantadores. A Primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava.
Ninguém saia da sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um
casaco de reserva no braço para resistir ao frio das sete horas; nem o paralta
portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao
anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante. O globo, naquele
tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A
gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos
planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade
das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia
sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar
constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos
sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. Depois, porém,
daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas
muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do
mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações
proceda de causas que, passado um indeterminado período, cessem de existir.
Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das
fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído
na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste,
alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de
pachorra para demonstrar a profundeza desta a minha hipótese original,
ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos,
a final, acabariam de todo com a Primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores
das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para o nosso
uso em Julho.
De mais
disso, o Porto da Primavera de 1762, gozava-se de ar impregnado de aromas,
porque, naquela era, grande numero de ruas que hoje respiram vapores nocivos
pelos férreos pulmões dos seus edifícios e fábricas, eram quintas, arvoredos,
jardins, ourelas e marginados verdejantes de límpidos regatos, que os duetos actuais
do gaz degeneraram em água poluída dessas dezenas de chafarizes em que tragamos
peçonha. Não era, todavia, o sol nem os aromas que extraordinariamente
alegravam as famílias mais gradas da cidade do Porto, no dia 15 de Maio de
1762. As bandeiras que tremulavam, brandamente assopradas por olorosas brisas,
por sobre os balcões e rótulos das janelas da rua Chan e Corpo-da-Guarda,
significavam algum grande júbilo nacional, que certamente não era casamento de
rei, nem nascimento de príncipe. Mais que no comum das famílias burguesas,
brincava o contentamento nas ridentíssimas filhas do Chanceler governador das
justiças Francisco José Serra Craisbeeck Carvalho, nas graciosas e fogosas
meninas do governador general da Província João D’Almada Melo, nas sobrinhas do
Cabo-mor Miguel José Moura, nas duas loiras irmãs do senhor de Quebrantões e
Gaia-pequena Álvaro Leite Pereira, e muitas mais, assim formosas que bem
nascidas. E, depois, que tráfego é este de costureiras que vão e vem; de
alfaiates azafamados que sobem e descem duns palácios para outros? Porque está
a praguejar aquele fidalgo impaciente contra os desgraciosos anéis da sua
cabeleira, enquanto a esposa vocifera contra a modista ignorante que lhe estreitou
as anquinhas, deixando-lhe quase molduradas na seda flexível as magras formas
da natureza sovina? Porquê tudo isso? Toda esta azáfama desusada na cidade com
os seus luxos e fidalgas folias?» In Camilo Castelo Branco, A Sereia, 1762-1768,
Editora Luso Livros, Wikipédia.
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