segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Regularidades Discursivas
As unidades do discurso
«(…) O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas também problemas teóricos. São estes os problemas que vão ser aqui estudados (as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas empíricas, se eu tiver, pelo menos, a oportunidade, o desejo e a coragem de empreendê-las). Entretanto, só serão considerados num campo particular: nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas no seu conteúdo, que se chamam história das ideias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos conhecimentos. Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas a sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenómenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e o seu mérito transferido para a originalidade, o génio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência, que fornece um suporte, demasiado mágico para poder ser bem analisado, aos factos de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento causal (mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenómenos de semelhança ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo, como por intermédio de um meio de propagação, unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias.
Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação, sua capacidade de inovação, a incessante correlacção dos seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilação e de trocas); descobrir, já actuantes em cada começo, um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre actuantes. O mesmo acontece, ainda, com as noções de mentalidade ou de espírito, que permitem estabelecer entre os fenómenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido, ligações simbólicas, um jogo de semelhança e de espelho, ou que fazem surgir, como princípio de unidade e de explicação, a soberania de uma consciência colectiva.
É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questão de cuidado com o método e em primeira instância, de uma população de acontecimentos dispersos. É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a distinção dos grandes tipos de discurso, ou a das formas ou dos géneros que opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc., e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas?» In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
                                                       
Cortesia de FUniversitária/JDACT