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de wikipedia
Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) Estugando o passo pela Rua
Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha
vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu
procurara agradar à Titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora
fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa Senhora
do Rosário? Diante de Nossa Senhora em todas as suas encarnações, e bem em evidência
para comover a Titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo em labaredas
de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilícios...
Até ai a Titi podia dizer com aprovação: é exemplar. Era-me preciso, para
herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: e santo! Sim! Eu
devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de
tal sorte, que a Titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente
desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos,
palmitos, andores, que era para ela a religião e o céu; e tomasse a minha voz
pelo santo ciciar dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe
parecesse já salpicada de estrelas, e diáfana como a túnica de bem-aventurança.
Então, evidentemente, ela testaria em meu favor, certa que testava em favor de Cristo
e da sua doce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem
decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazível fortuna do
Comendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus tesouros
incontáveis; as sombrias catedrais de mármore, que atulham a terra e a
entristecem; as inscrições, os papéis de crédito que a piedade humana
constantemente averba em seu nome; as pás de ouro que os Estados, reverentes,
lhe depositam aos pés trespassados de pregos; as alfaias, os cálices, e os
botões de punho de diamantes que ele usa na camisa, na sua Igreja da Graça? E
ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e
uns insípidos prédios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos
haveres, tu, ó filho do carpinteiro, mostrando à Titi a chaga que por ela
recebeste, uma tarde, numa cidade bárbara da Ásia, e eu adorando essa chaga,
com tanto ruído e tanto fausto, que a Titi não possa saber onde está o mérito,
se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não
te saber amar bastante!... Assim pensava, olhando de través o céu, no silêncio
da Rua de São Lázaro. Quando cheguei à casa, senti que a Titi estava no
oratório, sozinha, a rezar. Enfiei para o meu quarto, sorrateiramente;
descalcei-me; despi a casaca; esguedelhei o cabelo; atirei-me de joelhos para o
soalho, e fui assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o
peito, clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor... Ao ouvir, no silêncio da
casa, estas lúgubres lamentações de arrastada penitência, a Titi veio à porta
do oratório, espavorida.
Que é isso, Teodorico, filho, que
tens tu?... Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfalecido de paixão divina.
Desculpe, Titi... Estava no teatro com o doutor Margaride estivemos ambos a
tomar chá, a conversar da Titi... E vai de repente, ao voltar para casa, ali na
Rua Nova-da-Palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da minha
alma, e em tudo o que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma vontade de
chorar... Enfim, a Titi faz favor, deixa me aqui um bocadinho só, no oratório,
para aliviar... Muda, impressionada, ela acendeu reverentemente, uma a uma,
todas as velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de São José, favorito
da sua alma, para que fosse ele o primeiro a receber a ardente rajada de preces
que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ansioso. Deixou-me
entrar, de rastos. Depois, em silêncio, desapareceu, cerrando o reposteiro com
recato. E eu ali fiquei, sentado na almofada da Titi, coçando os joelhos, suspirando
alto, e pensando na viscondessa de Souto Santos ou de Vilar-o-Velho, e nos
beijos vorazes que lhe atiraria por aqueles ombros maduros e suculentos, se a
pudesse ter só um instante, ali mesmo que fosse, no oratório, aos pés de ouro
de Jesus, meu Salvador!
Corrigi
então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das
sextas-feiras não fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da
Titi, bebia asceticamente um copo de água e trincava uma côdea de pão; o
bacalhau comia-o à noite, de cebolada, com bifes à inglesa, em casa da minha
Adélia». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva
Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011,
ISBN 978-989-711-008-5.
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