sábado, 22 de fevereiro de 2020

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. « Aproveitava todos os momentos de solidão para o examinar, na esperança de alcançar o seu significado profundo, sobretudo depois do pôr-do-Sol, à chama de uma candeia…»



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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Entretanto, as visitas de Vermandois tornaram-se assíduas. Antes de levantar as tendas, o barão picardo insistia em querer ver Maynard restabelecido. Com esse objectivo, enviou-lhe um cirurgião para o tratar, o qual lhe aplicava unguentos curativos e uma modesta quantidade de ópio, para atenuar a dor na perna. Além disso, procurou a sua companhia em especial para se entreter em longas partidas de xadrez, durante as quais os dois beberricavam aguardente e conversavam sobre tudo um pouco. Muito rapidamente, o cavaleiro convenceu-se de que as suas melhoras não se deviam apenas aos medicamentos, mas também à presença daquele homem rude e orgulhoso. Que o ajudara a curar-se sobretudo em espírito. Desde que saíra da sacristia, trazia dentro de si uma grande amargura. A indiferença de Filipe VI face ao destino de Calais apresentara-lhe algo de mais desagradável do que uma simples reacção humana. Com efeito, as palavras do rei encerravam uma triste verdade, que muitos não expressavam. Os tempos da cavalaria haviam chegado ao fim. Fora suplantado por um tipo de guerra mais evoluído, no qual a coragem dos homens não contava relativamente ao extermínio dos inimigos. Entre um movimento de peças e outro, o cavaleiro falava do assunto com Robert, lamentando-se por viver numa época privada de coragem e de dignidade. Por outro lado, não era ingénuo. Sabia bem que as nobres gestas viviam apenas nas chanson recitadas nos torneios e nas legendae dos santos guerreiros. No entanto, não era hipócrita. Considerava que as estratégias de Eduardo III eram tão ignóbeis como as prepotências perpetradas por muitos milites franceses. Mas dentro de si ainda havia fé. A fé nos ideais que alimentara desde criança. A fé que vira pisada primeiro pelo pai e agora pelo seu soberano.
No entanto, outra preocupação não lhe dava tréguas: o texto contido no pequeno pergaminho. Aproveitava todos os momentos de solidão para o examinar, na esperança de alcançar o seu significado profundo, sobretudo depois do pôr-do-Sol, à chama de uma candeia, quando os maus presságios não lhe permitiam ganhar o sono. Foi assim que uma noite, depois da enésima tentativa, se apercebeu de que o primeiro verso do enigma lhe infundia uma remota sensação de familiaridade. O anjo, a pedra, o mar... Já devia ter ouvido aquelas palavras, estava convencido disso, ainda que não se conse­guisse lembrar de onde ou de quando. Invadido pela frustração, pôs o pergaminho de lado para observar a insígnia do anel de ouro. Seria possível que Karel do Luxemburgo estivesse realmente envolvido naquele obscuro acontecimento?, perguntou-se. Está sempre rodeado de padres, dissera Robert de Vermandois. De padres..., e de cardeais. O que fazeis, senhor? Maynard ergueu a candeia e viu o rapaz surgir das sombras. Não tens nada com isso, exclamou, irritado consigo mesmo por se ter deixado apanhar de surpresa. E esse magnífico anel?, questionou o jovem, apontando para o objecto, que cintilava na escuridão. É vosso? Nunca vi nada de semelhante. Preocupa-te com os teus assuntos, repreendeu-o o cavaleiro, cada vez mais áspero. O rapaz dirigiu-se para a saída, fingindo-se ofendido. O que significa que não vos contarei sobre o homem de preto. Que homem?, perguntou Maynard, voltando a chamá-lo. Aquele que há pouco andava a rondar a vossa tenda. Logo que me viu, foi-se embora. Rocheblanche franziu as sobrancelhas. Serias capaz de o descrever? Estava muito escuro para lhe ver o rosto, respondeu o rapaz. Trazia uma capa preta com o capuz descido até ao queixo. Só reparei que era de estatura baixa e que devia ser bastante novo, porque não tinha barba». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT