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A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Entretanto, as visitas de Vermandois tornaram-se assíduas. Antes de levantar as tendas, o barão picardo insistia em querer
ver Maynard restabelecido. Com esse objectivo, enviou-lhe um cirurgião para o
tratar, o qual lhe aplicava unguentos curativos e uma modesta quantidade de
ópio, para atenuar a dor na perna. Além disso, procurou a sua companhia em
especial para se entreter em longas partidas de xadrez, durante as quais os
dois beberricavam aguardente e conversavam sobre tudo um pouco. Muito
rapidamente, o cavaleiro convenceu-se de que as suas melhoras não se deviam
apenas aos medicamentos, mas também à presença daquele homem rude e orgulhoso.
Que o ajudara a curar-se sobretudo em espírito. Desde que saíra da sacristia,
trazia dentro de si uma grande amargura. A indiferença de Filipe VI face ao destino
de Calais apresentara-lhe algo de mais desagradável do que uma
simples reacção humana. Com efeito, as palavras do rei encerravam uma triste
verdade, que muitos não expressavam. Os tempos da cavalaria haviam chegado ao
fim. Fora suplantado por um tipo de guerra mais evoluído, no qual a coragem dos homens não contava relativamente ao
extermínio dos inimigos. Entre um movimento de peças e outro, o cavaleiro
falava do assunto com Robert, lamentando-se por viver numa época privada de
coragem e de dignidade. Por outro lado, não era ingénuo. Sabia bem que as
nobres gestas viviam apenas nas chanson
recitadas nos torneios e nas legendae
dos santos guerreiros. No entanto, não era hipócrita. Considerava que as
estratégias de Eduardo III eram tão ignóbeis como as prepotências perpetradas
por muitos milites franceses.
Mas dentro de si ainda havia fé. A fé nos ideais que alimentara desde criança.
A fé que vira pisada primeiro pelo pai e agora pelo seu soberano.
No entanto, outra preocupação não lhe dava tréguas: o texto contido no
pequeno pergaminho. Aproveitava todos os momentos de solidão para o examinar,
na esperança de alcançar o seu significado profundo, sobretudo depois do pôr-do-Sol,
à chama de uma candeia, quando os maus
presságios não lhe permitiam ganhar o sono. Foi assim que uma noite, depois da
enésima tentativa, se apercebeu de que o primeiro verso do enigma lhe infundia
uma remota sensação de familiaridade. O anjo, a pedra, o mar... Já devia ter
ouvido aquelas palavras, estava convencido disso, ainda que não se conseguisse
lembrar de onde ou de quando. Invadido pela frustração, pôs o pergaminho de
lado para observar a insígnia do anel de ouro. Seria possível que Karel do
Luxemburgo estivesse realmente envolvido naquele obscuro acontecimento?, perguntou-se. Está sempre
rodeado de padres, dissera Robert de Vermandois. De padres..., e de cardeais. O que fazeis,
senhor? Maynard ergueu a candeia e viu o rapaz surgir das
sombras. Não tens nada com isso, exclamou, irritado consigo mesmo por se ter
deixado apanhar de surpresa. E esse magnífico anel?, questionou o jovem,
apontando para o objecto, que cintilava na escuridão. É vosso? Nunca vi nada de
semelhante. Preocupa-te com os teus assuntos, repreendeu-o o cavaleiro,
cada vez mais áspero. O rapaz dirigiu-se para a saída, fingindo-se ofendido. O que significa que não vos contarei
sobre o homem de preto. Que homem?, perguntou Maynard, voltando a chamá-lo. Aquele que há pouco andava a rondar a
vossa tenda. Logo que me viu, foi-se embora. Rocheblanche
franziu as sobrancelhas. Serias capaz de o descrever? Estava muito escuro para
lhe ver o rosto, respondeu o rapaz. Trazia uma capa preta com o capuz descido
até ao queixo. Só reparei que era de estatura baixa e que devia ser bastante
novo, porque não tinha barba». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014,
tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.
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