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A morte de Lancelot
«(…) Em Toro ficara a cuidar da rainha
dona Joana que depositara nele a sua defesa se a guerra se perdesse para
Portugal. Tinha um incomensurável poder, a sua Casa aqui, em Castela, em
Navarra e Aragão. Afonso compensou o filho com rendas, doações de terras,
fortalezas, como Penamacor e o seu castelo, a alfândega de Setúbal, Mourão, Portalegre
e Alegrete. Depois, a dízima das rendas de além-mar e o tributo dos mouros do Algarve
e Marrocos. O pai, extasiado, perante a boa vontade do filho que lhe entregara
nas mãos, de novo, o seu Reino bem-amado! Foi no ano em que morreu o Rei de Aragão
e o marido de Isabel de Castela herdou o trono de seu pacífico pai, que foi o
grande protector dos Judeus no seu tempo, e ainda os direitos sobre a Sardenha
e as pretensões dinásticas sobre Nápoles e a Sicília. E João pensava: é preciso
agir. E assim fez porque o Rei, de repente, após ter recebido uma embaixada de
Castela, de fidalgos opositores a Isabel, começara novamente, cheio de sonhos
miríficos, a pensar, como se nada anteriormente se tivesse passado nova
aventura bélica para apoiar as frágeis pretensões da sobrinha Joana, que
passara a ser conhecida como Excelente Senhora, no Reino de
Portugal. Mas João estava alerta e Afonso, que se refugiava cada vez mais no
seu retiro do Varatojo, não conseguiu o apoio do filho. Foi mais uma chaga que
teve de sarar à sua custa, se é que a sarou ou ela seria para sarar, pois perdera
toda a força perante a inteligente e arguta serenidade daquele jovem que o olhava
com ternura, mas passara a manobra-lo à sua vontade.
Há nas nossas vidas momentos
aparentemente banais que determinam um destino ou parte dele. Foi num momento
assim que conheci mestre João Paz. Foi bom porque me tornei seu secretário, o cirurgião
a seu serviço, com o apoio da família, pois descobrimos, o nosso parentesco.
Ele baptizou-se com a mulher e o irmão, Ambrosius de nome como eu, que passara
a residir no Porto. Tinha filhos que mais tarde mestre João adoptou. João Paz
recebeu o apelido que o Príncipe lhe conferiu dada a sua devoção a Nossa
Senhora da Paz. A mulher também aceitou o baptismo e recebeu o nome da mãe do Príncipe,
Isabel. Foi por essa altura que Afonso o deu como médico ao filho e à nora, e
foi por esse tempo também que a princesa dona Leonor o indicou para físico do
seu jovem irmão Diogo. Sabia que João Paz nunca vivera na judiaria e, como
homem conceituado e protegido da casa Real, teve sempre direito a habitação
própria na cidade, perto da de Abravanel, morando parte do tempo com os Príncipes
que servia, e na casa dos Bragança. Chegou a deslocar-se a Beja, onde cuidava
de dona Beatriz e dos filhos, e a Vila Viçosa. As suas relações com a casa de
Bragança nunca esmoreceram. Foi já pouco antes de Setembro de 1478, recordo-me
perfeitamente, que, numa tarde muito quente, no intervalo de meus afazeres, na cera
do tio Gil, conheci também outro dos mais puros homens que o destino fez cruzar
com o meu e do qual me separei com desgosto, verdadeira consternação.
Trabalhava
com afinco no meu livro. A cópia que meu tio Gil encontrara era um pedaço de um
trecho de Plutarco sobre Alexandre. Um monge tinha raspado o pergaminho na
oficina de um qualquer mosteiro e outro escrevera, por cima, a história dos
mártires de Lyon. Mestre Tadeu retirou o que pôde da pele e começou a limpá-la
com o auxílio de um líquido que ele guardava numa ampola de vidro azulado. Agora
copia-se o que puderes e depressa, cabritinho! Porquê? Extasiado olhava-o a
trabalhar. Terei de pedir a alguém. Não sei Grego. Não faz mal. Eu sei. De
resto este texto parece uma cópia grega com poucos séculos. Como conseguiu? Com
um ácido que eu retirei de uma espécie de noz. Mas não podes demorar muito tempo
pois isto vai ficar tudo negro. De repente, ante meu olhar deslumbrado,
começava a aparecer a cor avermelhada dos caracteres antigos. É um milagre,
proferi, em êxtase. Não, Ambrosius, o seu rosto, muito sério, voltou-se para
mim. Não é um milagre. É muito simples. Desde a antiguidade romana e grega que
isto se faz. Só parece milagre o que o nosso espírito não pode ainda explicar. Mas
isso é uma heresia! E é. É heresia para os néscios, os mal-intencionados, os
fanáticos. A verdade é sempre simples e o tempo irá conceder-te também, se o
quiseres, claro, esse dom da sabedoria. A simplicidade das grandes verdades,
das grandes descobertas». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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