segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Há nas nossas vidas momentos aparentemente banais que determinam um destino ou parte dele. Foi num momento assim que conheci mestre João Paz»

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A morte de Lancelot
«(…) Em Toro ficara a cuidar da rainha dona Joana que depositara nele a sua defesa se a guerra se perdesse para Portugal. Tinha um incomensurável poder, a sua Casa aqui, em Castela, em Navarra e Aragão. Afonso compensou o filho com rendas, doações de terras, fortalezas, como Penamacor e o seu castelo, a alfândega de Setúbal, Mourão, Portalegre e Alegrete. Depois, a dízima das rendas de além-mar e o tributo dos mouros do Algarve e Marrocos. O pai, extasiado, perante a boa vontade do filho que lhe entregara nas mãos, de novo, o seu Reino bem-amado! Foi no ano em que morreu o Rei de Aragão e o marido de Isabel de Castela herdou o trono de seu pacífico pai, que foi o grande protector dos Judeus no seu tempo, e ainda os direitos sobre a Sardenha e as pretensões dinásticas sobre Nápoles e a Sicília. E João pensava: é preciso agir. E assim fez porque o Rei, de repente, após ter recebido uma embaixada de Castela, de fidalgos opositores a Isabel, começara novamente, cheio de sonhos miríficos, a pensar, como se nada anteriormente se tivesse passado nova aventura bélica para apoiar as frágeis pretensões da sobrinha Joana, que passara a ser conhecida como Excelente Senhora, no Reino de Portugal. Mas João estava alerta e Afonso, que se refugiava cada vez mais no seu retiro do Varatojo, não conseguiu o apoio do filho. Foi mais uma chaga que teve de sarar à sua custa, se é que a sarou ou ela seria para sarar, pois perdera toda a força perante a inteligente e arguta serenidade daquele jovem que o olhava com ternura, mas passara a manobra-lo à sua vontade.

Há nas nossas vidas momentos aparentemente banais que determinam um destino ou parte dele. Foi num momento assim que conheci mestre João Paz. Foi bom porque me tornei seu secretário, o cirurgião a seu serviço, com o apoio da família, pois descobrimos, o nosso parentesco. Ele baptizou-se com a mulher e o irmão, Ambrosius de nome como eu, que passara a residir no Porto. Tinha filhos que mais tarde mestre João adoptou. João Paz recebeu o apelido que o Príncipe lhe conferiu dada a sua devoção a Nossa Senhora da Paz. A mulher também aceitou o baptismo e recebeu o nome da mãe do Príncipe, Isabel. Foi por essa altura que Afonso o deu como médico ao filho e à nora, e foi por esse tempo também que a princesa dona Leonor o indicou para físico do seu jovem irmão Diogo. Sabia que João Paz nunca vivera na judiaria e, como homem conceituado e protegido da casa Real, teve sempre direito a habitação própria na cidade, perto da de Abravanel, morando parte do tempo com os Príncipes que servia, e na casa dos Bragança. Chegou a deslocar-se a Beja, onde cuidava de dona Beatriz e dos filhos, e a Vila Viçosa. As suas relações com a casa de Bragança nunca esmoreceram. Foi já pouco antes de Setembro de 1478, recordo-me perfeitamente, que, numa tarde muito quente, no intervalo de meus afazeres, na cera do tio Gil, conheci também outro dos mais puros homens que o destino fez cruzar com o meu e do qual me separei com desgosto, verdadeira consternação.
Trabalhava com afinco no meu livro. A cópia que meu tio Gil encontrara era um pedaço de um trecho de Plutarco sobre Alexandre. Um monge tinha raspado o pergaminho na oficina de um qualquer mosteiro e outro escrevera, por cima, a história dos mártires de Lyon. Mestre Tadeu retirou o que pôde da pele e começou a limpá-la com o auxílio de um líquido que ele guardava numa ampola de vidro azulado. Agora copia-se o que puderes e depressa, cabritinho! Porquê? Extasiado olhava-o a trabalhar. Terei de pedir a alguém. Não sei Grego. Não faz mal. Eu sei. De resto este texto parece uma cópia grega com poucos séculos. Como conseguiu? Com um ácido que eu retirei de uma espécie de noz. Mas não podes demorar muito tempo pois isto vai ficar tudo negro. De repente, ante meu olhar deslumbrado, começava a aparecer a cor avermelhada dos caracteres antigos. É um milagre, proferi, em êxtase. Não, Ambrosius, o seu rosto, muito sério, voltou-se para mim. Não é um milagre. É muito simples. Desde a antiguidade romana e grega que isto se faz. Só parece milagre o que o nosso espírito não pode ainda explicar. Mas isso é uma heresia! E é. É heresia para os néscios, os mal-intencionados, os fanáticos. A verdade é sempre simples e o tempo irá conceder-te também, se o quiseres, claro, esse dom da sabedoria. A simplicidade das grandes verdades, das grandes descobertas». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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