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«Não
basta morrer para conhecer o sorriso de Deus, mesmo que, como foi o meu caso,
se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia, aquele
sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos
arrancado às cordas da infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à
luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem
antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem
demasiado para poderem ser salvos. Tu dizias que era ao contrário: que Deus
nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu aluno dilecto,
cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia nada do Universo
quando o criou. Imagino que se sentiria só. Imagino que num momento impreciso
essa solidão se terá tornado maior do que Ele próprio, estourando numa gigantesca
flor de luz. E imagino-O, depois, tentando dar um sentido particular a cada uma
das pétalas dessa luz dispersa. Agora que saí do corpo que fui, para me tornar
pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim, imagino-o melhor ainda, ébrio
de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio
ser, em estado de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão.
E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá
em baixo, num caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez.
Não me levantarei da cama amanhã
depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o
empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis.
Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas,
não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único
homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão
do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me
ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus de algibeira, o meu amigo.
Despojada
de corpo é-me mais fácil transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de
que ele é feito. Num murmúrio de vento peço-Lhe que não me empurre tão depressa
para esse lugar iluminado que é a Sua Carne, peço-Lhe que me deixe matar
saudades desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou
matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço
quotidiano do teu sorriso». In Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, LeYa, 2016,
ISBN 978-989-660-402-8.
Cortesia
de LeYa/JDACT