1452-1480
«(…)
Pode-se dizer que Leonardo da Vinci teve uma infância feliz? Pelos critérios do
século XXI, seguramente não. Uma infância sem pai e com pouquíssima presença da
mãe, quase sem autoridade e sem verdadeira escola, sem limites, sem imposições...
Sem muito amor, mas, com certeza, uma infância livre, uma infância selvagem,
uma infância imensa. Numa paisagem que tece o pano de fundo dos sonhos de todo
europeu do Sul, no meio de oliveiras plantadas desde a Bíblia, vagando sob a árvore
da civilização, acompanhado do canto das cigarras, do ruído do vento nas folhas
de figueiras e amendoeiras perfumadas, dos regatos que correm entre uma colina
e outra, ele é o filho selvagem do campo da Toscana. Entre Siena, Pisa e Florença,
Vinci e Anchiano, entre vinhedos e ciprestes, charnecas e matagais, ele
percorre esse lugar como quem respira. Diante dele, a perder de vista, colinas
onduladas, casas e esplanadas, os troncos nítidos e negros dos pinheiros
recortados sobre arcadas brancas, das oliveiras de folhas descoradas, dos
carvalhos de folhagem estranhamente azulada, dos loureiros, dos ciprestes em
forma de lança...
Leonardo é tão livre como os
animais que vivem nessas paragens e que serão, durante toda a sua vida, seus
amigos. Seus primeiros e definitivos amigos. Nenhum o rechasser, (repelir) ele
ama de imediato e loucamente o ser vivo em todas as suas formas. Formas
vegetais, minerais, humanas, mas sobretudo animais. É o que o apaixona quando
criança e que o apaixonará até ao fim da vida. A vida, justamente. Eis o que
ele preza acima de tudo.
Em Anchiano, uma jovem servente
de albergue, Catarina, é seduzida e engravidada por um jovem notário importante
da cidade. É também rapidamente abandonada. Mas a família Vinci mostra alguma
atenção por ela. Oito meses após o nascimento da criança que ela certamente
conservou consigo, os Vinci lhe arranjam ou lhe compram um marido chamado Accattabriga,
apelido frequente entre os soldados e que significa brigão. Uma vez casado com
Catarina, ele passa a trabalhar como fabricante de cal, ou seja, explorando um
forno a partir do calcário local afim de produzir cal para argamassa, louças,
adubo... A família paterna de Leonardo os instala em algum local para depois não
ter mais de se preocupar com eles.
Após o nascimento de Leonardo,
Accattabriga faz seis filhos, um atrás do outro, na pobre Catarina. Ninguém
sabe se outros morreram. Suas meias-irmãs se chamam Piera, Maria, Antonia,
Lisabetta e Sandra; o único homem, Francesco, morrerá jovem, na guerra. Na verdade,
Leonardo mal conhece esses irmãos por parte de mãe. Desde pequeno, é na casa do
avô, em Vinci, que reside em companhia da avó Lucia e do tio Francesco. O pai e
as tias paternas já vivem longe, em cidades grandes. A vida em Vinci é modesta,
voluntariamente modesta. O avô Antonio optou pelo otium contra o negotium. A arte de viver em vez da arte de
enriquecer. Uma vida de pequeno proprietário rural.
Dessa existência austera ele fez uma vida feliz. Sem despesas supérfluas. A vida
não se compra, como não se compra a alegria. O pomar é cercado do que em Vinci
se chama de árvore-do-pão, um castanheiro toscano cuja farinha, quando o Inverno
se prolonga, alimenta homens e animais.
Assim Leonardo nasce,
por acaso, de uma ilusão de amor, do encontro fugaz de duas linhas, uma
proveniente da vida de estudo, a outra da vida bucólica. Será essa a explicação
da sua saúde física e intelectual, feita de equilíbrio e força, resistência e
argúcia? Mesmo sem ter sido desejada, a criança é aceita. Cresce sem coerções,
a escola da aldeia não faz muitas exigências. Ali ensinam os fundamentos. O abaco ministra
um ensino dito primário. Nesse povo de negociantes, todos devem aprender a
comprar, vender, avaliar o volume de uma jarra à primeira vista e multiplicar
os benefícios. Leonardo é uma criança inteligente, assimila tudo o que lhe propõem,
domina rapidamente os ensinamentos do abaco.
Nada parece tê-lo ferido ou traumatizado, como se diria hoje. Ele
aprende a ler, a escrever, a calcular e certamente um pouco mais, sem nenhuma
imposição. A prova é que conservou durante toda a vida a escrita especular dos
canhotos não contrariados nem corrigidos. Ninguém julgou conveniente
ensinar-lhe a usar a mão direita». In Sophie Chauveau, Leonardo da Vinci, 2008,
L&PM Pocket (colecção Biografias), Editora Gallimard, 2012, ISBN
978-852-542-640-6.
Cortesia
de EGallimard/JDACT