sábado, 22 de fevereiro de 2020

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Dona Paula é filha do segundo casamento de mestre Gil Vicente, autor dos autos que tanto animaram os brilhantes serões de El Rei Manuel I. Pequenina…»

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Madrugada. Os Pássaros da Bonança
«(…) Chegam ao terraço sobre a galeria de arcos, depois de regularem o andamento. Descansam breves minutos, encostadas a uma coluna encoberta das janelas do palácio, onde as damas costumam parar e contar seus segredos. Avançam por cima da porta pública, chamada o Arco das Pazes, em direcção à escada interior para alcançar o piso que leva ao pontão, na direcção do rio, um comprido terraço na muralha ornada de ameias. As águas, em sucessivos arremessos à forte estrutura de pedra, rendem homenagem às armas reais expostas a meio da parede, ladeadas por duas esferas armilares. Para nascente, no ponto onde termina a escada, estende-se outro prolongamento de largura igual e em frente, do lado oeste deste prolongamento, fica a porta que conduz à ponte de embarque, a mesma por onde a família real acede ao cais privado quando tem que viajar nos bergantins adaptados para esse fim.
Sua Senhoria e sua dama respiram o ar saudável da manhã diante do azul cinza das águas. Não se dá pela brisa, a não ser no baloiço desgovernado dos barcos mais pequenos, nas velas triangulares desfraldadas de uma caravela a dominar a paisagem, mais longe. O rio conta todos os dias uma nova história, salpicado de diferentes embarcações de vocação próxima e distante, enredadas na sua prosa lânguida. Barcas de dois mastros largas, pouco fundas, barcaças de transporte atulhadas de mercadorias, bateiras pequenas como canoas de fundo chato, todas esperam cumprir um fado já conhecido. Apesar de cedo a faina vai adiantada.
O barulho das regateiras, dos carrejões, vindo do lado do casario, mistura-se com as ordens de fidalgos a brutos carregadores, em ondas de som diluídas na fluência da manhá. Sua Senhoria faz o sinal de regresso quando a curiosidade desponta nos barcos próximos. Admiram agora o desafio das gaivotas, em real pose no torreão do corpo mais alto do palácio, encimado pelo minarete, percorrendo mais apressadas o mesmo caminho, sem vontade de encontros com todo o paço acordado. Menos mal que na ausência de Suas Altezas só os pássaros madrugam... Começam por vigiar o turno dos guardas, já de papo cheio, empoleirados no ornato das cantarias, depois de seguirem a agilidade dos dedos providenciais que fazem chover grãos minúsculos espalhados pelo parapeito. As vezes um bago ou outro aventura-se mais além, no pátio aparentemente calmo, e lá ousam a incursão até soarem os passos dos guardas no pavimento de pedra.
Dona Paula é filha do segundo casamento de mestre Gil Vicente, autor dos autos que tanto animaram os brilhantes serões de El Rei Manuel I. Pequenina, tão viva como boa tangedora, deixou o paço da rainha onde era moça de câmara, pouco depois do pai morrer, mal a Infanta começou a morar sozinha. É hoje uma de suas damas de maior confiança, sempre a fazer-lhe presente o que deve ser feito, quando. Agora mesmo lembra que frei António Conceição, recém-chegado de Coimbra, deve aguardá-las para a confissão, para a missa em privado, enquanto a capela real não se abre do lado do Largo do Relógio para a celebração destinada a pedir pela boa viagem de Suas Altezas. O frade deve estar ansioso por ouvir ordens sobre o governo da igreja do futuro convento de Enxobregas, conforme lhe foi prometido, e dona Paula por lhe entregar a generosa dádiva para as obras dos mosteiros mais necessitados da sua cidade.
A Infanta tem o próprio confessor, agora ausente, com quem se sente melhor. Mas entende a excitação de sua dama...Sugere-lhe que vá à frente confessar-se, entregar o donativo, enquanto ajoelha no banco do costume para uns minutos de recolhimento. Quando dona Paula entra na sacristia surpreende frei António de costas, às voltas com as alfaias e os paramentos. Ainda pouco à vontade num espaço que não conhece muito bem, iluminam-se-lhe os olhos negros, céus nocturnos repletos de estrelas, quando dona Paula lhe entrega a bolsa com o dinheiro para as obras dos conventos. Toda a gratidão se lhe escreve no sorriso, e uma emoção embaraçosa se adivinha... Oferece a dona Paula, do mesmo modo emocionada, a única cadeira, e dispõem-se a uma boa prosa antes que Sua Senhoria dê sinal de precisar de algum deles.
O frade recolhe novidades da corte, das viagens de Suas Altezas. Escuta com agrado os progressos do herdeiro de quem já soam em Coimbra os fartos elogios dos mestres. Devolve com pitorescos segredos de frades, freiras, segredos que a sua alegre juventude a mais ninguém confiaria e muito fazem rir dona Paula. Traz ainda novas do Colégio das Artes, do andamento do processo que acaba de mover-lhe a Inquisição (maldita). Desabafa, como se fosse ele a confessar-se, o medo dos seus poderes, o alcance que detém. Implementada há uma dúzia de anos já é capaz de levar ao extremo zelo a vigilância a locais públicos responsáveis pela cultura, crivando o que é ensinado. Tarde se fizeram sentir em Portugal as reformas saudáveis ao sabor do Renascimento, porém mais cedo morrem às mãos deste controlo violento das ideias. Sussurram, mas nem assim deixam de olhar em todas as direcções, não haja um delator de serviço à escuta...» In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT