segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Contos da Montanha. Miguel Torga. «Cem mil réis, na pior das hipóteses, estavam-lhe no papo. Só muito azar. Mas não. A Senhora da Saúde governava-se...»

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Um Roubo
«(…) Riscou um fósforo, de cabelos em pé. Até se desconhecia! Ninguém as calça que as não borre, bem se diz lá!... Na luz incerta que se fez, pôs-se a olhar febrilmente para todos os lados e a ouvir ao mesmo tempo, de orelha fita, o silêncio pesado da capela. Felizmente, nada. Imóveis e espantados, os santos pareciam surpreendidos, mas não faziam um gesto para defender a moradia. Realmente, todos de pau! Que sossego! Chegava a parecer mentira que uma casa de Deus tivesse de noite um ar tão desgraçado. Nos palheiros, ao menos, havia ratos! Deu alguns passos. Como o fósforo estava no fim e já lhe aquecia os dedos, riscou outro. Menos inseguro, subiu as escadas do altar de S, José, logo à entrada. E, quase serenamente, acendeu a vela dum castiçal. A igreja clareou quanto a luz pôde. E, mais iluminada, tomou-se ainda mais simples, mais natural. As imagens já nem sequer o ar atónito de há pouco conservavam; e o resto, francamente, sem nenhum ar divino. Toalhas, bancos, jarras... O trivial. Tanta mortificação inútil! Voltou-se. A caixa das esmolas estava ao fundo, enterrada na parede que ligava o templo ao cabido. Era do lado de fora, pela fresta cavada na cantaria, que os devotos deixavam cair a boa massinha. Pinga que pinga... Uma mina! Com passos de lã, chegou-se. Caramba, seria que não estivesse a abarrotar?! Pôs a luz no chão e meteu mãos à obra. Se calhar tinha que escaqueirar a tampa à martelada... Mas não é que a fechadura parecia de papelão e cedia ao cinzel sem resistência nenhuma?! Tudo às mil maravilhas... Um mês de tripa forra ninguém lho tirava.
Desgraçadamente, a caixa estava limpa. Ou fora roubada, ou a esvaziara o padre Bento na véspera ou então já não havia fé neste amaldiçoado mundo. Ah!, mas ele, Faustino, não se deixava enganar assim. Não. Tivesse a Senhora da Saúde paciência. Lá pouco dele, isso vírgula! Vinha com boas intenções. Obrigavam-no, pronto: ia o que houvesse e passava tudo a patacos. Pegou de repelão no castiçal e avançou indignado para o altar mor. Não acreditava que no sacrário a miséria fosse também assim. Era. Os dois SS entrelaçados na portinhola queriam dizer apenas um buraco escuro, vazio, onde os seus dedos resolutos tactearam em vão. Ladrões! Filhos duma grande... Nem ao menos o cálix! O que vale é que havia ainda a sacristia para revistar. E que não estivessem lá os apetrechos devidos! Ia a casa do abade, que lhe havia de pôr ali o que pertencia à santa... O cálix, a cruz, o turíbulo, tudo. E a bagalhoça, claro. Pouca vergonha! Investiu pela sacristia dentro. Queria ver quem levava a melhor. Mas qual o quê! Estava mesmo roubado. Flores desbotadas de papel, tocos de círios, um crucifixo partido... Que cambada!
Desanimado, pegou na luz. Larápios! À medida que o desespero tomava conta dele, perdia o resto duma precaução que a prudência lhe aconselhara. Falava alto, rogava pragas, caminhava pela capela abaixo com a indignada razão de quem andava na sua própria casa a verificar os danos dum assalto de bandidos! Canalhas! Até que chegou ao fim da nave. Olhou ainda os altares num relance. Os santos lá continuavam parados como há bocado e a olhá-lo agora a modos de caçoada. Sim senhor, uma linda figura de pedaço de asno que fizera diante deles! Pôs o castiçal no chão, soprou a vela, puxou a porta e saiu.
O temporal redobrara de fúria. A atravessar o adro, com a desilusão a percorrer-lhe as veias, é que via bem como a escuridão era cerrada e como a chuva lhe trespassava o corpo. Porca de vida! Um homem a fazer por ela, a aguentar no lombo uma noitada daquelas, para ao cabo dar com o nariz no sedeiro! Na carvalhada da Arcã já os ombros, de entanguidos, se lhe queriam meter pelo pescoço dentro. Filhadinho! A roupa ia-lhe tão colada ao corpo que parecia que era a pele. Cadela de sorte! Na curva, lá estava outra vez a alma do Joaquim Teodoro a pedir o padre-nosso. Pata que lambesse o Joaquim Teodoro! Padre-nossos, padre-nossos, ia-se a ver e a caixa da Senhora da Saúde sem um vintém! Ah! mas o abade punha-lhe ali a massa e o resto com língua de palmo. Oh, se punha! Às quatro da madrugada entrou em casa. Como um pitinho! A mulher lá estava ainda no mesmo sítio, calada, triste, longe da vida.
Não lhe falou. A escorrer água, gelado, foi direito à cama, despiu-se e meteu-se entre as mantas a bater os dentes. Pela manhã ardia em febre. E daí a seis dias, depois de um cáustico lhe abrir no peito urna bica de matéria e de o barbeiro de Parada o ter desenganado, foi preciso chamar o confessor, a ver se ao menos se lhe podia salvar a alma. Veio então o padre Bento, manso, vermelho, tranquilizador. Mas o Faustino delirava. E mal o santo homem, de sobrepeliz, lhe entrou pelo quarto dentro, arregalou os olhos, inteiriçou-se no catre, apontou-o à mulher e aos circunstantes, e com a voz toldada da bronco-pneumonia, rouquejou: ladrão! Prendam-no, que é ladrão!» In Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN 978-972-201-651-3.

Cortesia DQuixote/JDACT